A TEOLOGIA DEIXOU DE SER RESERVA DOS PADRES
Frei Bento Domingues,
O.P.
01 Junho 2025
1. Na Páscoa deste ano, os católicos, e não só, sentiram
a morte do Papa Francisco e acolheram o novo Papa, Leão XIV. Para os católicos,
esta é uma referência que só tem sentido no seguimento dos acontecimentos de há
2 mil anos, em torno de Cristo.
Hoje, na liturgia católica, somos confrontados com o começo
da Igreja contado em Os Actos dos Apóstolos. Como diz Frederico
Lourenço, é uma obra superlativamente bem escrita que, para lá das suas
magníficas qualidades literárias (dir-se-ia mesmo cinematográficas – tal é a
vivacidade pictórica da narrativa, carregada de suspense e povoada de
personagens retratadas com estudado realismo a viver situações extremas de
perigo, pranto e exaltação), exerce também pela sua temática um especial
fascínio, devido ao facto de nos descrever o dia seguinte após ter sido
cumprida, na Terra, a missão de Jesus.
O livro tem um objectivo declarado de narrar as primeiras
etapas do novo movimento religioso inspirado na vida e testemunho de Cristo e,
sendo o herói da narrativa o apóstolo Paulo, este texto constitui, para muitos
leitores ainda hoje, um documento fundamental para a reconstituição dos
primórdios do cristianismo[i]. Trata-se do segundo livro
de S. Lucas (Os Actos dos Apóstolos), que não pode ser entendido sem
tomar a sério o primeiro livro (o seu Evangelho).
Ele próprio confessa: No meu primeiro livro, ó Teófilo,
narrei as obras e os ensinamentos de Jesus, desde o princípio até
ao dia em que, depois de ter dado, pelo Espírito Santo, as suas instruções aos
Apóstolos que escolhera, foi arrebatado ao Céu. A eles também
apareceu vivo depois da sua paixão e deu-lhes disso numerosas provas com as
suas aparições, durante quarenta dias, e falando-lhes também a respeito do
Reino de Deus.
No decurso de uma refeição que partilhava com eles,
ordenou-lhes que não se afastassem de Jerusalém, mas que esperassem lá o
Prometido do Pai, do qual – disse Ele – me ouvistes falar. João
baptizava em água, mas, dentro de pouco tempo, vós sereis baptizados no
Espírito Santo.
Estavam todos reunidos, quando lhe perguntaram: Senhor, é
agora que vais restaurar o Reino de Israel? Respondeu-lhes:
Não vos compete saber os tempos nem os momentos que o Pai fixou com a sua
autoridade. Mas ides receber uma força, a do Espírito Santo,
que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a
Judeia e Samaria e até aos confins do mundo. Dito isto, elevou-se
à vista deles e uma nuvem subtraiu-o a seus olhos. E como
estavam com os olhos fixos no céu, para onde Jesus se afastava, surgiram de
repente dois homens vestidos de branco, que lhes disseram: Homens
da Galileia, porque estais assim a olhar para o céu? Esse Jesus que vos foi
arrebatado para o Céu virá da mesma maneira, como agora o vistes partir para o
Céu[ii].
2. Se a religião dá um sentido especial à vida, as expressões
desse sentido serão plurais. As religiões são diferentes. Aqui, interessa-me
destacar um dos aspectos que a convicção cristã assume, neste Domingo da
Ascensão de Cristo aos Céus. Se a abordagem da fé não é a da ciência[iii], é de
boa higiene mental partir do princípio de que não estamos a falar de um lugar
nem das vias de acesso a esse espaço que pudesse ser observado e descrito por
qualquer ciência ou técnica, como se Jesus fosse um dos precursores dos
astronautas. Basta de representações ridículas da fé. Na pregação, na catequese
e na teologia, temos de reflectir sobre a linguagem que a Bíblia e o Credo
cristão usam. As "leis" da linguagem simbólica, metafórica,
parabólica, poética e narrativa existem para sugerir, dão que pensar, mas não
obedecem a uma ligação circunscrita entre os significantes e os significados.
Esse tipo de explicações mata a música da linguagem e não dá conta das
transformações a que ela convida. A linguagem das transformações espirituais da
existência não se lê nem se interpreta com um dicionário.
A Ascensão pode entender-se como a
linguagem da fuga à manipulação política de Cristo pelas Igrejas. Jesus tinha
vencido essas tentações, mas nunca estarão definitivamente resolvidas. Os Actos
dos Apóstolos, a primeira história da Igreja, começam por essas permanentes
ambições dos discípulos: Senhor, será agora que ides restaurar a realeza em
Israel? Cristo parece cansado com essa pergunta recorrente. Dissera tantas
vezes que não veio ao Mundo para mandar, mas para servir a esperança e a
transformação da vida e eles sempre na mesma... Agora, confessa que só o
Espírito de Deus lhes poderá dar a volta e é o único dom que ele tem para a
Igreja.
É também recorrente a pergunta:
onde estarão as pessoas que amamos e morreram? Não aconselho ninguém a ir ao
cemitério. Creio que estão no coração de Deus, a casa definitiva de todos. Se
me perguntam onde é e como é, atrevia-me a dizer que é tão grande como o amor
de Deus, tão invisível e presente como Ele. Não procuro outro Céu.
3. Hoje, a teologia já não é reserva dos padres, como
acontecia no passado. As mulheres ainda se queixam, e com razão, de lhes ser
negado o acesso aos ministérios ordenados, mesmo quando são teólogas.
Uma freira austríaca, Martha
Zechmeister, teóloga e professora em El Salvador, enviou uma carta aberta a
Leão XIV. Depois de apontar vários aspectos semelhantes no seu percurso e no do
novo Papa, insiste em que chegou o momento de alterar a situação de
descriminação das mulheres, na Igreja, porque muito já se falou e escreveu.
Consta dessa carta o que a muitos poderá
parecer um atrevimento. Não é. É apenas um direito e um dever cristão.
Escreve ao Papa Leão: «és um homem sensato
e sensível. Ao ouvir a tua primeira mensagem breve e clara, senti-me muito
grata, porque a tua sobriedade e racionalidade contrastam com o populismo
irracional dos machões que dominam o mundo. E és canonista. Sabes quanto do aparato
da Igreja não é devido ao direito divino, mas surgiu historicamente e é moldado
pelo contexto e pela cultura; e quanto disso, portanto, pode mudar. A única
coisa que deve ser cânone, regra firme para a forma como organizamos a
Igreja, é a forma como Jesus formou a comunidade e como os seus discípulos se
reuniram depois do encontro com o Ressuscitado e da efusão do Espírito no
Pentecostes. Tudo o resto é obra humana e, portanto, modificável.
(…) Creio que chegou novamente a hora de derrubar muros e
dar espaço ao Espírito vivo de Deus.
(…) Não quero que esta Igreja continue a ser
um vestígio arcaico, reflectindo uma ordem social insustentável. Quero que
ombro a ombro – mulheres e homens – transformemos este mundo. E, para isso,
devemos começar já: com a plena integração das mulheres em todos os ministérios
de liderança na Igreja. Não mais tarde. Agora.
Com determinação, amor pela Igreja e uma
esperança ardente, a tua irmã, Martha».
Continuamos na celebração da Páscoa, Ascensão e Pentecostes.
É nesta Luz que nós vemos a Luz!