domingo, 1 de junho de 2025

A TEOLOGIA DEIXOU DE SER RESERVA DOS PADRES Frei Bento Domingues, O.P. 01 Junho 2025

 

A TEOLOGIA DEIXOU DE SER RESERVA DOS PADRES

Frei Bento Domingues, O.P.

01 Junho 2025

 

1. Na Páscoa deste ano, os católicos, e não só, sentiram a morte do Papa Francisco e acolheram o novo Papa, Leão XIV. Para os católicos, esta é uma referência que só tem sentido no seguimento dos acontecimentos de há 2 mil anos, em torno de Cristo.

Hoje, na liturgia católica, somos confrontados com o começo da Igreja contado em Os Actos dos Apóstolos. Como diz Frederico Lourenço, é uma obra superlativamente bem escrita que, para lá das suas magníficas qualidades literárias (dir-se-ia mesmo cinematográficas – tal é a vivacidade pictórica da narrativa, carregada de suspense e povoada de personagens retratadas com estudado realismo a viver situações extremas de perigo, pranto e exaltação), exerce também pela sua temática um especial fascínio, devido ao facto de nos descrever o dia seguinte após ter sido cumprida, na Terra, a missão de Jesus.

O livro tem um objectivo declarado de narrar as primeiras etapas do novo movimento religioso inspirado na vida e testemunho de Cristo e, sendo o herói da narrativa o apóstolo Paulo, este texto constitui, para muitos leitores ainda hoje, um documento fundamental para a reconstituição dos primórdios do cristianismo[i]. Trata-se do segundo livro de S. Lucas (Os Actos dos Apóstolos), que não pode ser entendido sem tomar a sério o primeiro livro (o seu Evangelho).

Ele próprio confessa: No meu primeiro livro, ó Teófilo, narrei as obras e os ensinamentos de Jesus, desde o princípio até ao dia em que, depois de ter dado, pelo Espírito Santo, as suas instruções aos Apóstolos que escolhera, foi arrebatado ao Céu. A eles também apareceu vivo depois da sua paixão e deu-lhes disso numerosas provas com as suas aparições, durante quarenta dias, e falando-lhes também a respeito do Reino de Deus.

No decurso de uma refeição que partilhava com eles, ordenou-lhes que não se afastassem de Jerusalém, mas que esperassem lá o Prometido do Pai, do qual – disse Ele – me ouvistes falar. João baptizava em água, mas, dentro de pouco tempo, vós sereis baptizados no Espírito Santo.

Estavam todos reunidos, quando lhe perguntaram: Senhor, é agora que vais restaurar o Reino de Israel? Respondeu-lhes: Não vos compete saber os tempos nem os momentos que o Pai fixou com a sua autoridade. Mas ides receber uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo. Dito isto, elevou-se à vista deles e uma nuvem subtraiu-o a seus olhos. E como estavam com os olhos fixos no céu, para onde Jesus se afastava, surgiram de repente dois homens vestidos de branco, que lhes disseram: Homens da Galileia, porque estais assim a olhar para o céu? Esse Jesus que vos foi arrebatado para o Céu virá da mesma maneira, como agora o vistes partir para o Céu[ii].

2. Se a religião dá um sentido especial à vida, as expressões desse sentido serão plurais. As religiões são diferentes. Aqui, interessa-me destacar um dos aspectos que a convicção cristã assume, neste Domingo da Ascensão de Cristo aos Céus. Se a abordagem da fé não é a da ciência[iii], é de boa higiene mental partir do princípio de que não estamos a falar de um lugar nem das vias de acesso a esse espaço que pudesse ser observado e descrito por qualquer ciência ou técnica, como se Jesus fosse um dos precursores dos astronautas. Basta de representações ridículas da fé. Na pregação, na catequese e na teologia, temos de reflectir sobre a linguagem que a Bíblia e o Credo cristão usam. As "leis" da linguagem simbólica, metafórica, parabólica, poética e narrativa existem para sugerir, dão que pensar, mas não obedecem a uma ligação circunscrita entre os significantes e os significados. Esse tipo de explicações mata a música da linguagem e não dá conta das transformações a que ela convida. A linguagem das transformações espirituais da existência não se lê nem se interpreta com um dicionário.

A Ascensão pode entender-se como a linguagem da fuga à manipulação política de Cristo pelas Igrejas. Jesus tinha vencido essas tentações, mas nunca estarão definitivamente resolvidas. Os Actos dos Apóstolos, a primeira história da Igreja, começam por essas permanentes ambições dos discípulos: Senhor, será agora que ides restaurar a realeza em Israel? Cristo parece cansado com essa pergunta recorrente. Dissera tantas vezes que não veio ao Mundo para mandar, mas para servir a esperança e a transformação da vida e eles sempre na mesma... Agora, confessa que só o Espírito de Deus lhes poderá dar a volta e é o único dom que ele tem para a Igreja.

É também recorrente a pergunta: onde estarão as pessoas que amamos e morreram? Não aconselho ninguém a ir ao cemitério. Creio que estão no coração de Deus, a casa definitiva de todos. Se me perguntam onde é e como é, atrevia-me a dizer que é tão grande como o amor de Deus, tão invisível e presente como Ele. Não procuro outro Céu.

3. Hoje, a teologia já não é reserva dos padres, como acontecia no passado. As mulheres ainda se queixam, e com razão, de lhes ser negado o acesso aos ministérios ordenados, mesmo quando são teólogas.

Uma freira austríaca, Martha Zechmeister, teóloga e professora em El Salvador, enviou uma carta aberta a Leão XIV. Depois de apontar vários aspectos semelhantes no seu percurso e no do novo Papa, insiste em que chegou o momento de alterar a situação de descriminação das mulheres, na Igreja, porque muito já se falou e escreveu.

Consta dessa carta o que a muitos poderá parecer um atrevimento. Não é. É apenas um direito e um dever cristão.

Escreve ao Papa Leão: «és um homem sensato e sensível. Ao ouvir a tua primeira mensagem breve e clara, senti-me muito grata, porque a tua sobriedade e racionalidade contrastam com o populismo irracional dos machões que dominam o mundo. E és canonista. Sabes quanto do aparato da Igreja não é devido ao direito divino, mas surgiu historicamente e é moldado pelo contexto e pela cultura; e quanto disso, portanto, pode mudar. A única coisa que deve ser cânone, regra firme para a forma como organizamos a Igreja, é a forma como Jesus formou a comunidade e como os seus discípulos se reuniram depois do encontro com o Ressuscitado e da efusão do Espírito no Pentecostes. Tudo o resto é obra humana e, portanto, modificável.

(…) Creio que chegou novamente a hora de derrubar muros e dar espaço ao Espírito vivo de Deus.

(…) Não quero que esta Igreja continue a ser um vestígio arcaico, reflectindo uma ordem social insustentável. Quero que ombro a ombro – mulheres e homens – transformemos este mundo. E, para isso, devemos começar já: com a plena integração das mulheres em todos os ministérios de liderança na Igreja. Não mais tarde. Agora.

Com determinação, amor pela Igreja e uma esperança ardente, a tua irmã, Martha».

Continuamos na celebração da Páscoa, Ascensão e Pentecostes. É nesta Luz que nós vemos a Luz!



[i] Cf. Frederico Lourenço, Bíblia, Vol. II – Novo Testamento. Apóstolos, Epístolas, Apocalipse, Quetzal, 2016, p.45

[ii] Act 1, 1-11

[iii] Cf. Francisco J. Ayala, Darwin y el Diseño Inteligente, Alianza, 2008.

 

sábado, 31 de maio de 2025

A Ascensão, a Cinderela das festas cristãs? - P. Manuel João Pereira Correia mccj

 

A Ascensão, a Cinderela das festas cristãs?

A festa da Ascensão não era celebrada até o século V. Considerava-se que fazia parte integrante da glorificação de Jesus ressuscitado (Filipenses 2,9-11). De fato, a Ascensão é a outra face da Ressurreição, ou seja, a elevação e a exaltação de Cristo.

O pastor e teólogo valdense Paolo Ricca (+2024) escreveu que a Ascensão se tornou “a Cinderela das festas cristãs”. É verdade: é uma festa pouco valorizada pela Igreja, talvez por seu aspecto de melancolia, devido à partida definitiva de Jesus. No entanto, “essa despedida não tem nada de um adeus: a tristeza, como o velho fermento, é varrida pela Páscoa…; a ascensão deixa no coração dos apóstolos ‘uma grande alegria’. A angústia pela partida do Senhor situa-se cronologicamente antes da Paixão; então os discípulos se entristecem como a mulher cuja hora chegou (…) Aqui se alude ao reencontro da Páscoa, e a alegria pascal não é perturbada pela ascensão ao céu” (H.U. von Balthasar).

A Ascensão nos traz uma mensagem alegre de uma dupla presença. Por um lado, o Senhor Jesus, “elevado ao céu”, garante, no entanto, sua presença na terra, no meio dos seus. Santo Agostinho diz: “Cristo não deixou o céu quando desceu até nós e não nos deixou quando subiu ao céu”. Por outro lado, estando nós ainda na terra, já estamos com Ele no céu, onde Ele – como “grande sacerdote na casa de Deus” – intercede por nós. Nossa verdadeira morada é em Deus, mas, com a encarnação, a morada de Deus é a humanidade. A Ascensão nos revela “o novo e vivo caminho que Ele [Jesus] nos abriu através do véu, isto é, da sua carne” (Hebreus 10,20-21, segunda leitura) e mostra que Jesus é a verdadeira “escada de Jacó” que conecta céu e terra (João 1,51).

A Ascensão, festa do envio

Gostaria de destacar a dimensão missionária da Ascensão, que nem sempre é suficientemente enfatizada. Geralmente, consideramos Pentecostes como a “festa da missão”, com a efusão do Espírito, o nascimento da Igreja e o início da pregação apostólica. Isso é verdade. No entanto, não podemos ignorar que o “mandato missionário” ocorre no dia da Ascensão. Hoje, portanto, é a festa do envio da Igreja em missão! A Ascensão é, ao mesmo tempo, o ponto de chegada para Jesus — o fim do seu ministério — e o ponto de partida para a Igreja, enviada em missão. Ao movimento vertical de Jesus em direção ao céu corresponde o movimento horizontal da Igreja em direção ao mundo. Jesus conclui sua missão na terra e se torna “invisível” para dar espaço, visibilidade e responsabilidade à missão dos seus discípulos na terra.

A missão vista a partir da Ascensão

O trecho do Evangelho de Lucas de hoje nos oferece algumas indicações sobre a missão:

  • O PROPÓSITO da missão: “Em seu nome serão anunciados a todos os povos a conversão e o perdão dos pecados”. Chama a atenção o fato de São Lucas considerar o convite à conversão e a remissão dos pecados como os dois aspectos prioritários da missão. Estamos bem distantes da sensibilidade atual. Como traduzir concretamente esse duplo anúncio como “boa notícia” é o grande desafio que a Igreja é chamada a enfrentar!

  • DESTINATÁRIOS, LUGARES e PROTAGONISTAS da missão: a pregação deve ser dirigida “a todos os povos”, ou seja, em todos os lugares; a missão não tem fronteiras e não exclui ninguém. Mas começa “a partir de Jerusalém”, para depois ir às periferias — uma “Igreja em saída”, como dizia o Papa Francisco. Jerusalém como ponto de partida garante a continuidade — não sem rupturas (veja o Concílio de Jerusalém em Atos 15) — entre o antigo e o novo Israel. A Jerusalém histórica é o ponto de partida, mas a Jerusalém celeste, a meta final da missão. Os protagonistas da missão não são apenas os Doze, mas todos os discípulos de Cristo, em comunidade, porque o envio é coletivo.

  • A MODALIDADE da missão: “Disso sois testemunhas”. O evangelista destaca sobretudo a dimensão missionária do testemunho. Esse testemunho é possível graças à nova compreensão da Palavra: “Então lhes abriu a mente para compreenderem as Escrituras” (Lucas 24,45); e ao poder do Espírito: “E eis que enviarei sobre vós aquele que meu Pai prometeu; permanecei, porém, na cidade até que sejais revestidos da força do alto” (24,49). A alegria e o louvor são a primeira forma de testemunho: “Então voltaram para Jerusalém com grande alegria e estavam continuamente no templo, bendizendo a Deus” (24,52-53). Tudo isso é conhecido em nível de ideias, mas quanto essas dimensões fundamentais da missão — a Palavra, o Espírito, a Alegria e o Louvor — pesam de fato na nossa programação e prática?

  • A missão sob o signo da BENÇÃO: “Enquanto os abençoava, afastou-se deles e foi levado ao céu”. A bênção é a última ação de Jesus na terra. A missão acontece sob esta bênção, fonte de Louvor e Alegria. Sem ela, facilmente caímos na tentação da murmuração, do desânimo e da tristeza — ou seja, na “maldição”!

A missão reaviva a esperança da espera

Segundo os Atos, dois anjos da Ascensão anunciam aos apóstolos: “Este Jesus, que dentre vós foi levado ao céu, virá do mesmo modo como o vistes subir”. A Ascensão implica a esperança do retorno de Cristo para nos levar com Ele.

A missão tem também como tarefa manter viva a esperança e ajudar a Igreja a manter acesa a lâmpada da fé na expectativa da volta do Esposo. Sobre o retorno de Cristo, de fato, paira uma das mais inquietantes perguntas do evangelho: “Mas, quando o Filho do Homem vier, encontrará fé sobre a terra?” (Lucas 18,8).

P. Manuel João Pereira Correia, mccj


P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com


Optimismo-pessimismo: a ambiguidade do mundo - Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia

 Optimismo-pessimismo:

a ambiguidade do mundo

Anselmo Borges

Padre e Professor de Filosofia

Foi Leibniz que, numa obra célebre –

Teodiceia -, na qual, perante a existência do

mal, queria defender e justificar Deus, se

apresentou como arauto do optimismo. O

nosso mundo é o melhor dos mundos

possíveis.

Leibniz era um cristão convicto e,

portanto, Deus, entre os mundos possíveis,

tinha de ter criado o melhor. De facto, se

este nosso mundo criado não fosse o

melhor, haveria a possibilidade de outro

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melhor, o que significaria que ou Deus não

tinha conhecido esse mundo melhor ou não

o tinha querido ou não tinha podido criá-lo,

o que contradiz a sua omnisciência, a sua

bondade infinita e a sua omnipotência.

Veio o terramoto de Lisboa em 1755, que

tornava impossível a manutenção de ideias

optimistas. Voltaire escreveria o famoso

“Poema sobre o desastre de Lisboa”, onde

pede aos filósofos enganados que venham

ver as mulheres e as crianças empilhadas

umas sobre as outras, todos esses

desgraçados enterrados debaixo dos seus

tectos, terminando os seus dias no horror

dos tormentos.

Voltaire escreveu também o Cândido,

onde escalpeliza a ideia de que tudo

contribui para o melhor. O optimismo de

Pangloss e a candura de Cândido vêem-se

confrontados com a realidade bruta do mal:

as desgraças humanas causadas pelas

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catástrofes naturais, pela estupidez

humana, pelas instituições, pelas guerras,

pela avareza, pela superstição, pela

escravatura, pela hipocrisia, pelo tédio, por

todo o tipo de exploração...

Se, para Leibniz, o nosso é o melhor dos

mundos possíveis, para Arthur

Schopenhauer, é precisamente o contrário:

este é o pior dos mundos possíveis. Existir é

sofrer.

Segundo Schopenhauer, o mundo na

sua realidade última é vontade, mas

vontade cega. Tudo é impulsionado pela

vontade de viver, uma vontade infinita

nunca saciada, de tal modo que os nossos

impulsos e desejos nunca encontram

satisfação. O optimismo não passa de

escárnio frente à dor sem fim nem limites

da humanidade.

Schopenhauer acompanha-nos pelos

hospitais, pelas cadeias, pela selva (pensa-se

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pouco na dor dos animais), pelos campos de

batalha, pelos matadouros, pelas câmaras

de tortura, por todas as moradas da miséria.

A necessidade é o açoute permanente dos

humanos, mas, quando a satisfazem,

entram no tédio e desejam outra coisa – a

vida é como um pêndulo entre a dor e o

tédio. No fim, o destino é a solidão atroz,

pois cada um, no mais profundo, está

sempre sozinho. Depois, é a morte.

Pergunta-se: Devemos ser optimistas ou

pessimistas? O mundo tal como se nos

apresenta exige o optimismo ou a única

atitude razoável é o pessimismo? O

optimismo celebra o óptimo, que é o

superlativo absoluto simples de bom. O

pessimismo deixa-se derrotar pelo péssimo,

que é o superlativo absoluto simples de

mau.

Mas o mundo nem é óptimo nem é

péssimo. O mundo é ambíguo, uma mistura

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de bem e de mal. E nele fazemos

experiências negativas de contraste:

deparamo-nos com a negatividade, mas

sempre como aquilo que não devia ser, isto

é, em confronto com a positividade. Isto

significa que nos vivemos a nós mesmos no

mundo na perplexidade. O mundo não nos

aparece como completamente absurdo e,

por isso, perguntamos, à procura de um

sentido, de sentido último.

A própria Bíblia, que é toda atravessada

pela esperança, não é de modo nenhum

ingénua nem ignora o horror do mundo. O

livro de Job é paradigmático. Job, inocente,

açoitado pela desgraça, ousa erguer a voz

em quase blasfémia, quer levar Deus a

tribunal e chega a amaldiçoar ter nascido:

“Job tomou a palavra e disse: ‘Desapareça o

dia em que nasci e a noite em que foi dito:

‘Foi concebido um varão!’ Porque não morri

no seio da minha mãe? Por que razão foi

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dada luz ao infeliz e vida àqueles para

quem só há amargura? Esses esperam a

morte que não vem e procuram mais do que

um tesouro; esses saltariam de júbilo e se

alegrariam por chegar ao sepulcro.”

De qualquer modo, no meio de uma

história de calvário, a Bíblia é uma gritaria

por liberdade, sentido e salvação...

Num mundo comum, que crentes e não

crentes habitam, o que os separa é a

interpretação que dão a esse mundo

ambíguo. E não é pelo facto de o serem que

os crentes o interpretam de uma

determinada maneira, o mesmo

acontecendo aliás com os descrentes ou os

ateus. Pelo contrário, uma determinada

interpretação é que leva à fé ou ao ateísmo,

mas de tal modo que a fé, a descrença, o

agnosticismo ou o ateísmo aparecem aos

crentes, aos descrentes, aos agnósticos e aos

ateus, respectivamente, como a melhor

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maneira de interpretar e dar sentido à

existência e à realidade ambígua.

À maneira de apêndice, fica a pergunta,

absurda, mas cujo propósito, na sua

dimensão de abismo sem fundo, se entende:

Se me fosse dado escolher, teria escolhido

nascer, vir ao mundo? Faça-se a pergunta,

pensando na Ucrânia, Gaza, África onde

umas 18.000 crianças morrem todos os dias

de fome ou vítimas de umas 25 guerras em

curso, em Myanmar...: Quantos teriam

escolhido ter nascido?

A outra pergunta: O que se impõe para

melhorar o mundo?

Sábado, 31 de Maio de 2025

segunda-feira, 26 de maio de 2025

O novo normal Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia

 Crónicas PÁRA E PENSA

O novo normal

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

1. Há dias, Ursula von der Leyen fez

uma comunicação de abalo e despertar.

Nela, referiu que “hoje aumentam as

tensões geopolíticas. As regras

comerciais estão a ser reescritas”,

caindo-se numa guerra comercial

global. “Acontecimentos climáticos

extremos são cada vez mais frequentes,

devido às mudanças climáticas. A

mudança nas tecnologias é cada vez

mais rápida”, apresentando o exemplo

da IA (inteligência artificial), que está a

evoluir mais rapidamente do que

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imaginaríamos há algum tempo...

Para rematar: “The ‘new’ normal is

anything but ‘normal’.” O ‘novo normal

é tudo menos ‘normal’.”

2. Entretanto, uma boa amiga

escreveu-me nestes termos:

“Estou tão triste, meu amigo.

Que mundo vamos deixar aos jovens?

Que planeta?

Que pessoas?

Onde vamos buscar esperança?”

3. Ah! Se, nesta corrida vertiginosa e

louca em que embarcámos, cada uma,

cada um, parasse! Para pensar. Pensar

vem do latim “pensare”, que quer dizer

pesar razões e, portanto, reflectir,

meditar..., para ir ao essencial.


O crente irradiação da Shekinah de Deus - Pe. Manuel João Pereira Correia, mccj

 

O crente irradiação da Shekinah de Deus

Ano C – Tempo Pascal – 6º Domingo
João 14,23-29: “Viremos a ele e faremos nele a nossa morada.”

Aproximamo-nos das festas da Ascensão e de Pentecostes. O Evangelho deste domingo, como o do domingo passado, oferece-nos um trecho do longo discurso de despedida de Jesus durante a Última Ceia. Ao anunciar a sua partida, o ambiente enche-se de tristeza. O abatimento, a perplexidade e o medo percorrem os discípulos. Jesus tranquiliza-os, convidando-os a não temer (cf. Jo 14,1.27) e promete que a sua tristeza se transformará em alegria (Jo 16,20.22).

O dom da paz e o Paráclito

Jesus procura garantir a coesão do grupo dos discípulos. No domingo passado, o Senhor entregou-lhes – e a nós – o mandamento do amor. Hoje oferece a paz: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz.” Notemos bem: Jesus não deseja a paz, Ele a dá! Aquela que fora a sua paz, agora a entrega a nós. Uma paz tão forte e profunda que nem mesmo a perseguição a pode suplantar.

Além disso, Jesus promete outro dom: o Espírito Santo. “O Paráclito, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, Ele vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que Eu vos disse.”
Repetidamente, no seu discurso, Jesus reafirma esta promessa do envio do Espírito (Jo 14,16-17; 14,26; 15,26; 16,7-11; 16,13-15), acrescentando a cada vez novos detalhes sobre a missão do Espírito Santo, chamado a continuar a obra de Jesus.

É o Espírito Santo que torna sólida e duradoura a paz do cristão, pois Ele é o nosso Paráclito – Parákletos em grego –, ou seja, o “Advogado” que está ao nosso lado como defensor e consolador. Se o pequeno e desorientado grupo dos apóstolos, composto por pessoas humildes e analfabetas, conseguiu revolucionar a história do mundo, isso só se pode explicar com a ajuda de uma força divina: o Espírito Santo!

A angústia de uma ausência

O discurso de despedida de Jesus gira em torno do anúncio da sua partida iminente, que perturba profundamente o grupo. Quatro apóstolos fazem quatro perguntas a tal propósito. O número quatro é símbolo de totalidade e universalidade (como os quatro pontos cardeais). Os quatro – Pedro, Tomé, Filipe e Judas – representam cada um de nós. As perguntas que fazem a Jesus são também as nossas, aquelas que teríamos feito então e que continuamos a fazer hoje.

Entramos numa fase crítica de “mudança de época”, de contornos ainda obscuros, um desafio inédito: estimulante para alguns, inquietante para outros. Na nossa cultura ocidental, muitos crentes vivem esta crise como um “inverno eclesial” e uma “noite escura” da fé. A atmosfera daquela noite no Cenáculo pode simbolizar e iluminar o nosso presente de aparente “eclipse” de Deus.

1. Pedro: generosidade e fragilidade. A primeira pergunta é de Pedro. Ao anúncio da partida, Simão Pedro pergunta a Jesus: “Senhor, para onde vais?”. Jesus responde: “Para onde Eu vou, não podes seguir-me agora; seguir-me-ás mais tarde.” Pedro insiste: “Senhor, por que não posso seguir-Te agora? Darei a minha vida por Ti!”
Pedro é a imagem do discípulo decidido e generoso, que ama o seu Senhor, mas não leva em conta a própria fragilidade (cf. Jo 13,36-38). Quantas vezes também nós fizemos promessas semelhantes, para depois agir com covardia na hora da verdade. O Senhor não se escandaliza com a nossa fraqueza. Ele sabe esperar: “Seguir-me-ás mais tarde!”

2. Tomé: voluntariedade e incerteza. Jesus esclarece o objetivo da sua “viagem”: “Vou preparar-vos um lugar.” E acrescenta: “E do lugar para onde Eu vou, conheceis o caminho.”
Intervém Tomé, o discípulo prático e concreto, teimoso e voluntarioso: “Senhor, não sabemos para onde vais; como podemos conhecer o caminho?”
Também nós, muitas vezes, gostaríamos que o Senhor fosse mais explícito e claro na nossa vida. Com tantos caminhos atrativos diante de nós, sentimos-nos frequentemente desorientados.
Jesus responde: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim” (Jo 14,2-6). O Pai é o destino, e Jesus é o caminho para lá chegar, através da sua palavra e do seu exemplo.

3. Filipe: idealismo e concretismo. Jesus acrescenta ainda: “Se me conhecestes, também conhecereis o meu Pai; desde agora o conheceis e o vistes.”
Imagino que o grupo tenha ficado bastante perplexo com esta afirmação do Mestre, perguntando-se entre si quando teriam visto o Pai. É certo que Jesus falara continuamente do Pai, chegando a dizer que Ele e o Pai eram “um só” (Jo 10,30). Mas o Pai, na verdade, nunca O tinham visto!
Então intervém Filipe e pede: “Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta!” (Jo 14,8-10). Filipe, a meu ver, é o tipo de discípulo bom, idealista e simples. Também nós, por vezes, gostaríamos de “ver” sem mediações. No entanto, Jesus insiste: é preciso passar pela mediação do Filho. “Quem me vê, vê o Pai”; “Crede-me: Eu estou no Pai e o Pai está em mim.”

4. Judas: pragmatismo e impaciência. O quarto discípulo a intervir é Judas, não o Iscariotes, talvez Judas Tadeu ou um primo de Jesus. Quando Jesus fala de se manifestar a eles, aos discípulos, ele exclama, um tanto surpreso: “Senhor, como se explica que Te manifestarás a nós, e não ao mundo?”
Judas é o tipo de discípulo pragmático e impaciente com o rumo que os acontecimentos estão a tomar. A sua é uma observação bastante justa e razoável, diríamos. Eles, os discípulos, já O conheciam e acreditavam n’Ele. Jesus deveria manifestar-se com sinais e prodígios aos que ainda não criam.
A mesma coisa já Lhe tinham dito os seus parentes: “Se fazes estas coisas, manifesta-Te ao mundo” (Jo 7,3-5). A mesma, exata coisa diríamos muitos de nós hoje. Com crescente preocupação vemos diminuir o número de crentes, muitas vezes ridicularizados e perseguidos. Os valores evangélicos têm cada vez menos influência na sociedade. A guerra e a injustiça alastram... E Deus permanece em silêncio!

A surpresa de uma nova presença

O trecho do Evangelho de hoje apresenta a resposta de Jesus a Judas.
Começa com uma revelação extraordinária: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e o meu Pai o amará, e viremos a ele e faremos nele a nossa morada.”
Aquele que os céus não podiam conter; que no passado se limitava a visitar os seus amigos Abraão, Jacó, Moisés...; que Se fazia presente na Arca da Aliança; que consentiu estabelecer a sua morada (Shekinah) no Templo; que nos últimos tempos Se tornara “Emanuel”, Deus no meio de nós... agora dá um passo ulterior e estabelece a sua Shekinah no coração do crente!

É algo inaudito, uma realidade misteriosa, íntima e profunda, que talvez ainda não tenhamos interiorizado. São Paulo percebeu isso muito bem quando afirmou que somos o Templo de Deus (cf. 1Cor 3,17 e 6,19; veja também 2Cor 6,16; Ef 3,17; Rom 8,11).

Talvez achemos isso grande demais para ser verdade. Ou, quem sabe, temos receio de ser acusados de pietismo, de intimismo ou de espiritualismo? Contudo, não há um “evangelho” mais belo e, ao mesmo tempo, mais revolucionário. O coração do crente – movido pelo amor e por uma fé operosa – torna-se uma espécie de rede (web) de relações de comunhão e de interação entre a humanidade e Deus.

Mas não pensemos que Deus espera uma recepção cinco estrelas! Basta-Lhe um coração simples e aberto: com uma mesa, uma toalha e uma flor fresca; o pão e uma jarra de água fresca (ou melhor ainda, uma garrafa de vinho!) sobre a mesa; algumas cadeiras em volta; e a porta entreaberta, convidando o viandante.

A cada um de nós cabe a fantasia e a criatividade para traduzir tudo isso em gestos concretos e num estilo de vida. Então seremos a irradiação da Shekinah, da Morada de Deus, testemunhas da Ressurreição!

Pe. Manuel João Pereira Correia, mccj

 

 




terça-feira, 20 de maio de 2025

A verdadeira novidade é o amor - P. Manuel João Pereira Correia, mccj

 A verdadeira novidade é o amor

Ano C - Tempo Pascal - 5º Domingo

Leituras: Actos 14,21-27; Salmo 144; Apocalipse 21,1-5;

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João 13,31-35: “Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros”.

 

Com os dois últimos domingos do tempo pascal, entramos na preparação imediata para as festas da Ascensão e do Pentecostes. São os domingos da despedida. O Evangelho deste domingo e do próximo oferece-nos excertos do discurso de despedida de Jesus aos seus discípulos na Última Ceia. É o seu testamento, antes da sua paixão e morte.

Porquê retomar estes textos precisamente no tempo pascal? A Igreja segue a antiga tradição de ler, durante este período, os cinco capítulos do Evangelho de João relativos à Última Ceia (capítulos 13 a 17), nos quais Jesus apresenta o sentido da sua morte e da sua “Páscoa”.

Além disso, poderíamos dizer que, tratando-se de um legado, o testamento deve ser aberto após a sua morte. Jesus deixa a sua herança, os seus bens, a nós, seus herdeiros. A sua herança por excelência é o mandamento do amor, tema da passagem evangélica de hoje.

 

1. Uma palavra une as três leituras de hoje: NOVO ou NOVIDADE.

 

Na primeira leitura, dos Actos dos Apóstolos, encontramos a notícia contada por Paulo e Barnabé à Igreja de Antioquia, que os tinha enviado em missão: “como Deus tinha aberto a porta da fé aos gentios”;

Na segunda leitura, tirada do Apocalipse, João vê “um novo céu e uma nova terra” e “a cidade santa, a nova Jerusalém, que desce do céu, vinda de Deus”, e ouve a Voz que diz: “Eis que faço novas todas as coisas”;

No Evangelho, Jesus dá-nos “um mandamento novo”.

Vivemos numa sociedade onde predomina o tédio, sobretudo entre os jovens. Precisamos de estímulos constantes, de novidades, para tornar os nossos dias mais atraentes. Infelizmente, muitas vezes confundimos novidade com diversidade. As novidades que nos são propostas são muitas vezes uma reciclagem do antigo, pelo que envelhecem rapidamente, deixando-nos desiludidos e insatisfeitos.

Por outro lado, as verdadeiras novidades assustam-nos porque perturbam os nossos princípios e o nosso modo de vida. Exigem que “nasçamos de novo”, como disse Jesus a Nicodemos (João 3,3).

Se isto é verdade para cada cristão, é igualmente verdade para cada comunidade cristã e para toda a Igreja. A fidelidade à Tradição não pode dissimular a tentação de cair no passado, em tradições antigas e ultrapassadas. A acusação feita à Igreja de estar ancorada ao passado deve fazer-nos questionar a nossa abertura ao sopro inovador do Espírito.

A escuta e o acolhimento da Palavra, que nos propõe a novidade, exigem de nós uma grande abertura de mente e de coração. O perigo é o de nos fecharmos ao novo, o que traz sempre alguns estragos à nossa vida. Pior ainda seria se esta Palavra ressoasse nos nossos ouvidos como “velha”, só porque a ouvimos tantas vezes! Peçamos, pois, ao Senhor que faça de nós “odres novos” para recebermos o seu “vinho novo”!

 

2. Uma nova GLÓRIA

 

“Quando Judas saiu [do Cenáculo], Jesus disse: 'Agora o Filho do Homem foi glorificado, e Deus foi glorificado nele'”.

Ao escutar o Evangelho de hoje, a nossa atenção dirige-se imediatamente para o “mandamento novo”, mas esta novidade é introduzida por uma outra, incompreensível, chocante e escandalosa, porque parece subverter a nossa visão da realidade.

Quando Judas sai para o entregar, em vez de exprimir tristeza e dor, Jesus fala de “glorificação” - e fá-lo cinco vezes. Jesus liga a sua glória, e a glória de Deus, à traição de Judas! De que glória se trata, então? A de ser levantado na cruz, porque a cruz é a manifestação máxima do amor de Deus.

Judas encarna a mentalidade do Messias “vencedor”; Jesus, pelo contrário, manifesta-se como um Messias “perdedor”. O verdadeiro Messias adopta a lógica do amor. “É por isso que o Pai me ama: porque dou a minha vida para a retomar” (Jo 10,17), disse o Bom Pastor no domingo passado.

 

Esta visão invertida da realidade é um murro no estômago quando comparada com a nossa constante busca de “vanglória”. Perguntemo-nos, então: que tipo de glória procuro, nos meus pensamentos, desejos, fantasias e intenções para as minhas acções? O tipo de glória que procuramos revela se temos fé ou não. Pois Jesus diz-nos: “Como podeis crer, vós que recebeis glória uns dos outros e não procurais a glória que vem do único Deus?” (João 5,44).

 

3. Um novo MANDAMENTO

 

“Filhinhos, por mais um pouco de tempo estou convosco. Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros”. (Ver também Jo 15,12 e 15,17).

Em que consiste esta novidade?

É “nova” porque não é espontânea nem natural, não nasce do instinto.

É nova porque se caracteriza pela gratuidade e não pela reciprocidade.

É novo porque abole o velho “olho por olho e dente por dente”.

É nova porque ultrapassa a sabedoria do antigo preceito: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Levítico 19,18).

É novo porque agora o padrão do amor é Jesus: “Como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros”.

É novo sobretudo porque nunca envelhecerá. O que vive no tempo envelhece, mais cedo ou mais tarde. Mas o que pertence aos “novos céus e à nova terra” não envelhece mais, porque participa da eternidade de Deus.

É novo porque é final e definitivo, escatológico, isto é, do fim. A fé e a esperança passarão, mas só o amor permanecerá (1 Cor 13,13). Porque o amor é a própria essência de Deus: “Deus é amor” (1Jo 4,8). Por isso, já não faz sentido distinguir entre o amor a Deus e o amor aos irmãos, entre o amor “vertical” e o amor “horizontal”, porque o amor é um só.

Este tipo de amor será o critério supremo para reconhecer o discípulo de Jesus:

“Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros.”

 

4. Como obter este novo AMOR?

 

Diz-se que o coração não pode ser comandado. Como, então, adquirir este amor? Contemplando-o na Eucaristia, onde este amor é celebrado. “Fixando o olhar em Jesus” (Hebreus 12,2). Contemplando com amor e ternura o Crucificado, onde este amor se consuma. Ou, nas palavras de São Daniel Comboni, dirigindo-se aos seus missionários:

“Mantenham sempre os olhos fixos em Jesus Cristo, amando-o ternamente e procurando compreender cada vez melhor o que significa um Deus morto na cruz para a salvação das almas. Se, com fé viva, contemplarem e saborearem um mistério de tal amor, serão bem-aventurados por se oferecerem para perder tudo e morrer por Ele e com Ele”. (Escritos, 2721-2722)

 

P. Manuel João Pereira Correia, mccj

 

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Mudança na Constituição da Igreja - Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia

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Crónicas PÁRA e PENSA
Mudança

na Constituição da Igreja

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

Estes dias desde a morte do Papa Francisco em que os meios de
comunicação social estiveram concentrados no Vaticano,
infelizmente muitas vezes nem sempre pelas melhores razões
cristãs no sentido fundo da palavra, pois lembrava-se por vezes
mais a pompa e o fausto das cortes imperiais dos antigos impérios,
deveriam ter sido uma ocasião para reflectir de modo fundo sobre
o cristianismo na sua profundidade essencial, a melhor mensagem
que alguma vez chegou à Humanidade na sua História e, dessa
reflexão, tirar necessárias e urgentes conclusões, para voltar
precisamente ao essencial.

1. É confrangedor e mesmo horripilante saber que há ainda
quem pregue e até ensine na catequese que Jesus veio ao mundo,
enviado por Deus, para ser crucificado como vítima expiatória
pelos pecados. Por causa do pecado dos primeiros pais, a
Humanidade tinha uma dívida infinita para com Deus, que Jesus
pagou na cruz, e assim Deus pôde aplacar a sua ira e reconciliar-
se com a Humanidade.

Em relação a este Deus bárbaro e macabro, pior do que qualquer
ser humano decente e que faz lembrar os deuses a quem as pessoas
sacrificavam os seus filhos primogénitos como vítimas para os
aplacar e implorar bens e graças, eu pessoalmente sou ateu.
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2. Na realidade, foi o contrário que se passou. Jesus anunciou
exactamente o contrário. Este é o seu Evangelho, notícia boa e
felicitante: Deus é bom, Abbá (querido Papá), Pai/Mãe. E todos
são seus filhos e filhas e ele só quer o bem deles, a sua alegria,
felicidade e realização plena de todos. Essa foi a mensagem de
Jesus por palavras e obras, seguindo-se que, se todos são filhos e
filhas, todos são irmãos e irmãs e devem agir em consequência

Era evidente que essa mensagem ia contra os interesses do
Templo. Jesus enfrentou concretamente o sacerdócio judaico
parece que havia uns 20 000 sacerdotes e levitas e Flávio Josefo
refere que numa páscoa degolaram 255 600 cordeiros. Segundo
Jesus, é preciso aprender que o que Deus quer é justiça e
misericórdia, dizia-lhes: "Ide aprender: Deus não quer sacrifícios
rituais de vítimas, quer justiça e misericórdia". A mensagem de
Jesus também ia contra os interesses de Roma, pois os impérios
não existem para a fraternidade, mas para a exploração...

Jesus sabia, portanto, que punha em risco a sua vida, mas não se
acobardou. Pelo contrário, foi até ao fim para dar testemunho da
Verdade e do Amor. Assim, foi julgado e condenado à morte e
morte de Cruz: o horror pura e simplesmente. Ele, o inocente, foi
vítima não de Deus, mas dos homens, vítima de um assassinato.
Deus, porém, ressuscitou-o: Jesus, na morte, não encontrou o nada,
mas a plenitude da vida, e os discípulos acreditaram e foram
anunciar a Boa Nova e surgiram comunidades de cristãos e cristãs.
Eles amavam como Jesus mandara: “Dou-vos um mandamento
novo: amai-vos uns aos outros como eu vos amei.”. E reuniam-se
em banquetes festivos e fraternos para recordar a Última Ceia e
outros banquetes de Jesus, a sua mensagem, a sua morte, a sua
ressurreição, celebrar e aprofundar a fé e a esperança, animar a
caridade, o amor... E a celebração acontecia na casa de um cristão
ou cristã com uma casa maior e melhor, e quem presidia era o dono
ou a dona da casa.
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3. Com o tempo (século III) quem explicou isso bem foi
Herbert Haag, Professor da Universidade de Tubinga, talvez o
maior exegeta do século XX, que tive o privilégio de ter como
querido amigo , também porque os cristãos iam sendo acusados
de ateus por não oferecerem sacrifícios à divindade, a Eucaristia
foi perdendo esse carácter de banquete festivo e fraterno e surgiu a
sua interpretação como sacrifício o manual de Teologia por que
estudei em jovem ainda falava na Missa como mactatio mystica
Christi (matação, imolação mística de Cristo, discutindo-se se a
imolação era real, moral, sacramental) e, quando presentemente
nas igrejas se olha para os altares laterais, vem à lembrança o
tempo ainda recente em que vários sacerdotes iam oferecendo, só
com um acólito, que nada entendia, até porque era em latim, o
“santo sacrifício da Missa” por diversas intenções, e ainda não se
acabou com o absurdo dos “Trintários de Missas e, com a
interpretação da Eucaristia como sacrifício de expiação pelos
pecados, começou a ordenação sacerdotal e, assim, na Igreja
apareceram duas classes: o clero com todos os seus privilégios e
os leigos. Totalmente contra o que Jesus queria: "sois todos
irmãos". E nem Jesus nem os Apóstolos ordenaram sacerdotes.
Mas, com a ordenação sacerdotal, apareceu não só uma Igreja com
duas classes o clero e o povo , mas foi-se também impondo o
celibato, e as mulheres, que antes também tinham presidido, foram
excluídas, por causa da impureza ritual

E nem Francisco abriu a porta à ordenação presbiteral
intencionalmente, não utilizo a palavra sacerdotal das mulheres
nem à ordenação de homens casados e ao fim da lei do celibato

4. Para voltar a Jesus, impõe-se uma mudança na Constituição
da Igreja, uma verdadeira revolução, que implica, como explico
longamente no meu mais recente livro: O Mundo e a Igreja. Que
Futuro?, "pôr fim à ordenação de sacerdotes".

Evidentemente, na Igreja não sou anarquista haverá, como
desde o início houve, funções, ministérios e serviços ordenados,
que até podem ser temporários, de homens e mulheres, mas não
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com a ordenação sacerdotal, com ordens sacras, o que é
completamente diferente.

De facto, segundo a doutrina oficial, a ordenação sacerdotal
implica uma transformação ontológica do ordenado, fazendo dele
um "alter Christus", "outro Cristo", só ele podendo presidir à
Eucaristia e perdoar os pecados na confissão. Com a ordenação
sacerdotal, a Igreja não tem reforma possível, por causa da sua
divisão automática em duas classes, repito: clero e povo, de tal
modo que, quando se fala em Igreja, o que se está normalmente a
referir é menos de 1% da Igreja: a chamada hierarquia. E Jesus
tinha dito: "sois todos irmãos".

E aí estão a peste do clericalismo e a pompa e o luxo destes dias.
E, quando se entrou em conclave para eleger o novo Papa,
esteve aquele “extra omnes”: fora todos, todos os que não
pertencem ao conclave, ao qual só pertence o topo da hierarquia,
aliás num sistema endogâmico, pois aqueles 133 cardeais eleitores
são purpurados criados por Papas anteriores, portanto,
evidentemente, sem nenhuma mulher, mesmo se mais de metade
dos católicos são mulheres...

Sábado, 17 de Maio de 2025