segunda-feira, 16 de junho de 2025

Deus: o essencial Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia

 Deus: o essencial

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

Vivemos imersos em crises que nos

desumanizam, mas a maior, no meu

entender, é vivermos mergulhados no ter,

no prazer, no poder pelo poder, nas redes

sociais, nas tecnologias, no imediatismo, na

vertigem da pressa, esquecendo o ser, o

parar para pensar, a pergunta por Deus...

Enredamo-nos assim no sem sentido...

Com razão, perguntava Karl Rahner,

talvez o maior teólogo católico do século XX

2

— tenho a honra de ter sido aluno: O que

aconteceria, se a simples palavra “Deus”

deixasse de existir? E respondia: “A morte

absoluta da palavra ‘Deus’, uma morte que

eliminasse até o seu passado, seria o sinal, já

não ouvido por ninguém, de que o Homem

morreu.”

Václav Havel, o grande dramaturgo e

político, pouco tempo antes de morrer,

surpreendeu muitos ao declarar que

“estamos a viver na primeira civilização

global” e “também vivemos na primeira

civilização ateia, numa civilização que

perdeu a ligação com o infinito e a

eternidade”, temendo, também por isso,

que “caminhe para a catástrofe”.

Há uma correlação íntima entre a

concepção de Deus e a concepção do

Homem. Com o eclipse de Deus é o sentido

do mundo que desaparece e o próprio

Homem perde orientação. George Minois

3

conclui a sua História do Ateísmo: se,

independentemente da sua resposta,

positiva ou negativa, o Homem já não vir

necessidade de colocar a questão de Deus,

isso significa que, pela primeira vez na sua

História, a Humanidade sucumbe ao

imediatismo, a uma visão fragmentária do

aqui e agora e “abdica da sua procura de

sentido”.

No contexto de uma crise global — crise

financeira, económica, social, política, moral

—, é preciso decisivamente perguntar se a

crise de Deus não ocupa lugar central.

De qualquer modo, a quem não quiser

ficar na pura imediatidade empírica — será

isso possível? — impõe-se a questão do

mistério último da realidade. A pergunta

essencial é então se se opta pela Natureza

impessoal ou pelo Deus transcendente,

pessoal e criador.

4

Compreende-se o fascínio em

permanecer na afirmação da Natureza como

força geradora divina de tudo. Esta

concepção é bem resumida pelo filósofo

Marcel Conche, ao escrever que Deus é

inútil, pois a Natureza cria seres que podem

ter ideias de todas as coisas, inclusive da

própria Natureza. Está a referir-se não à

Natureza “oposta ao espírito ou à história

ou à cultura ou à liberdade”, mas à

“Natureza omni-englobante, a physis grega,

que inclui nela o Homem. Essa é a Causa

dos seres pensantes no seu efeito.”

Esta concepção confronta-se, porém, com

objecções de fundo. Por um lado, ao

divinizar a Natureza, põe em causa a

secularização e, consequentemente, a

liberdade. Por outro, tem dificuldades em

explicar como é que a Natureza, que é

impessoal, dá origem à pessoa, como é que

mecanismos da ordem da terceira pessoa

5

acabam por dar origem a alguém que se

vive a si mesmo como eu irredutível na

primeira pessoa.

Neste domínio, houve um debate

significativo entre o matemático P.

Odifreddi e o Papa emérito Bento XVI. Na

sua resposta ao livro de Odifreddi, Caro

Papa, ti scrivo, Bento XVI escreveu uma

longa carta, em parte publicada no jornal

“La Repubblica” de 24 de Setembro de 2013,

referindo precisamente este debate.

Textualmente: “Com o 19º capítulo do seu

livro, voltamos aos aspectos positivos do

seu diálogo com o meu pensamento.

Mesmo que a sua interpretação do

Evangelho segundo São João 1, 1 — “No

princípio era o Logos e o Logos estava com

Deus e o Logos era Deus” — esteja muito

longe do que o evangelista pretendia dizer,

existe, no entanto, uma convergência que é

importante. Mas se o senhor quer substituir

6

Deus por ‘A Natureza’, fica a questão: quem

ou o que é essa natureza. O senhor não a

define em lugar nenhum e, portanto, ela

parece ser uma divindade irracional que

não explica nada. Mas eu quereria

sobretudo fazer notar ainda que, na sua

religião da matemática, três temas

fundamentais da existência humana não são

considerados: a liberdade, o amor e o mal.

Espanta-me que o senhor, com uma única

referência, liquide a liberdade que, contudo,

foi e é o valor fundamental da época

moderna. O amor, no seu livro, não aparece,

e também não há nenhuma informação

sobre o mal. Independentemente do que a

neurobiologia diga ou não diga sobre a

liberdade, no drama real da nossa história

ela está presente como realidade

determinante e deve ser levada em

consideração. Mas a sua religião

matemática não conhece nenhuma

7

informação sobre o mal. Uma religião que

ignore essas questões fundamentais

permanece vazia.”

Evidentemente, quem acredita no Deus

transcendente, pessoal e criador sabe que

Deus não é pessoa à maneira das pessoas

humanas, finitas. Deus também não é um

Super-homem. O que se quer dizer é que

Deus não é um Isso, uma Coisa. Como

escreveu o teólogo Hans Küng, “Deus, que

possibilita o devir da pessoa, transcende o

conceito do impessoal: não é menos do que

pessoa”. Não esquecendo que Deus é e

permanece o Inabarcável, o Indefinível, o

Inominável — Gregório de Nazianzo (330-

390) perguntava: “Ó Tu, o para lá de tudo,

não é tudo o que se pode dizer de Ti?” —,

pode dizer-se que é “transpessoal”.

Só nEle pode o ser humano encontrar

sentido, Sentido último.

Sábado, 14 de Junho de 2025

domingo, 15 de junho de 2025

PARA QUANDO A ELEIÇÃO DOS BISPOS? Frei Bento Domingues, O.P. 15 Junho 2025

 

PARA QUANDO A ELEIÇÃO DOS BISPOS?

Frei Bento Domingues, O.P.

15  Junho 2025

 

1. Em Portugal, várias dioceses estiveram muito tempo sem bispo, à espera da decisão do Vaticano. Na Suíça, as estruturas locais da diocese Saint-Gall elegeram o novo Bispo que Leão XIV confirmou a 22 de Maio. Recolhi esta notícia no 7Margens de 23.05.2025.

A 20 de Agosto de 2024, o capítulo da catedral, constituído por 13 membros do clero, abriu nas comunidades diocesanas uma ampla consulta, inspirada no processo sinodal, essencialmente online, envolvendo 173 grupos e 1305 pessoas, para reflectir sobre o perfil que deveria ter o bispo a eleger, face aos desafios da diocese no presente e no futuro.  A partir de 9 de Setembro do mesmo ano, com base nas conclusões da consulta, liderada pelo Instituto Suíço de Sociologia Pastoral, sediado em Saint Gall, o capítulo da catedral chegou a uma lista de seis candidatos cujas trajetórias foram investigadas pela Nunciatura e pelo Dicastério para os Bispos, lista devolvida à diocese, sem objecções, em Abril de 2025.

A diocese de Saint-Gall, criada no século XIX, conserva esse privilégio de eleger o seu bispo. Este acontecimento levanta a seguinte problemática: o que antes era um privilégio veio a encontrar-se, em 2021, com o que tem sido trabalhado em toda a Igreja para que esta se torne uma Igreja sinodal – caminhar juntos. Isto exige a participação em todas as instâncias da diocese, a começar pelo seu bispo.

Nos primórdios do cristianismo, havia vários modelos de evangelização, para que, a partir de Jesus Cristo, se reconhecesse que a Igreja é uma união na diversidade. O que dizia respeito a todos, devia ser tratado por todos. O Espírito da Igreja vem de Deus para transformar as relações humanas, para criar um mundo fraterno, como dizia o Papa Francisco, Fratelli Tutti.

A Carta aos Efésios diz que Cristo é a nossa paz, Ele que, dos dois povos – judeus e gentios –, fez um só povo, destruindo o muro de separação, a inimizade[1]. A vocação dos baptizados é a de acabar com todos os muros. Infelizmente, muitas vezes, participam na sua construção.

O Concílio de Florença, em 1442, excluiu da salvação todos aqueles que não professaram a fé católica. A intransigência deste axioma facilitava o trabalho dos teólogos, definia as fronteiras. Este parecer, tão duro e absurdo, terminou por ser questionado, já que o testemunho da Escritura sobre a bondade de Deus é eloquente: quer que todos os seres humanos se salvem[2].

A história da Igreja já tem mais de 2 mil anos e, nesta história, encontramos fidelidades e traições a Jesus Cristo. É também a história de verdadeiras e falsas reformas, como escreveu o dominicano, Yves Congar[3].

2. O que é um bispo? É um líder religioso com responsabilidades eclesiásticas em diversas tradições cristãs, especialmente na Igreja Católica, Ortodoxa e algumas anglicanas e luteranas. De forma geral, são responsáveis pela governança e administração de uma diocese, ensinando, doutrinando, santificando e representando a Igreja.

Na 1ª Carta a Timóteo, temos uma descrição básica do que ele pensava acerca do Bispo: «É digna de fé esta palavra: se alguém aspira ao episcopado, deseja um excelente ofício. Mas é necessário que o bispo seja irrepreensível, marido de uma só mulher, sóbrio, ponderado, de bons costumes, hospitaleiro, capaz de ensinar; que não seja dado ao vinho, nem violento, mas condescendente, pacífico, desinteressado; que governe bem a própria casa, mantendo os filhos submissos, com toda a dignidade. Pois, se alguém não sabe governar a própria casa, como cuidará ele da igreja de Deus? Que não seja neófito, para que não se ensoberbeça e caia na mesma condenação do diabo. Mas é necessário também que ele goze de boa reputação entre os de fora, para não cair no descrédito e nas ciladas do diabo»[4].

3. O dominicano português, Frei Bartolomeu dos Mártires (1514-1590), uma das figuras mais relevantes do Concílio de Trento (1545-1563), desenhou o que deve ser o perfil do bispo que, ainda hoje, nos questiona pela sua actualidade, Estímulo de Pastores[5]. Ficou conhecido como o bracarense por causa do permanente desassossego reformador que introduziu na última fase do Concílio de Trento e mais bracarense se tornou, na firme resistência à guerrilha que o poderoso Cabido da Arquidiocese desencadeou contra a efectivação do programa das reformas conciliares, pelas quais sempre lutou e das quais nunca desistiu.

O território da diocese de Braga era, na altura, o que está agora repartido por quatro dioceses: Viana, Braga, Vila Real e Bragança. É normal que todas se sintam herdeiras dos longos e pedregosos caminhos que Frei Bartolomeu percorreu, a pé ou na sua mula, por fidelidade ao lema episcopal que adoptara: arder e iluminar sem nunca se acomodar à desfiguração do mundo e da Igreja do seu tempo[6].

Frei Luís de Sousa (1555-1632) foi o seu exímio biógrafo[7] e Frei Raúl de Almeida Rolo (1922-2004) publicou as suas obras completas com o patrocínio da Fundação Calouste Gulbenkian.

Como disse, D. Jorge Ortiga, o Papa Paulo VI ofereceu, no final do Concílio Vaticano II, um exemplar a cada um dos bispos que participaram no Concílio. A oferta foi o reconhecimento da sua actualidade para a renovação da Igreja em todas as coordenadas geográficas. Foi ainda um apelo a todos os bispos para que definissem as prioridades da vida pessoal e, posteriormente, concretizassem o aggiornamento que o Espírito Santo sugeria e continuava a interpelar[8].

Para Frei Bartolomeu dos Mártires era toda a Igreja que precisava mudar, do topo até à base, a começar pelos eminentíssimos cardiais que precisavam de uma eminentíssima reforma.

Os bispos não podiam, como se tornara habitual, viver regaladamente dos bens das dioceses, longe dos diocesanos e os párocos longe das suas paróquias. Tudo, na Igreja, tinha de estar ao serviço das populações, sobretudo dos mais pobres, que devem ser os preferidos da acção das dioceses, das paróquias e das ordens religiosas, varrendo todas as benesses, nepotismos e privilégios por mais antigos que se apresentassem.

Foi o Papa Francisco que autorizou a canonização de Frei Bartolomeu dos Mártires (2019). Tinha descoberto que este Bispo português, do século XVI, tinha vivido, na sua pessoa e na sua acção, o projecto da reforma da Cúria, do conjunto da Igreja e o tinha precedido no combate ao vírus do carreirismo eclesiástico. A sua vida foi um milagre. Não era preciso esperar outro para o canonizar.

 

 

 



[1] Ef 2, 14

[2] Christian Duquoc, OP, El destierro de la Teología, Edições Mensajero, 2006, p. 27

[3] Y.M.-J. Congar, Vraie et fausse réforme dans l’Église, Cerf 1950

[4] 1 Tm 3, 1-7

[5] Traduzido em português e publicado em 2017, Stimulus Pastorum, 1565

[6] Romanos, 12, 2.

[7] Frei Luís de Sousa, A Vida de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, Imprensa Nacional, 1984, 76-77.

[8] Estímulo de Pastores (Stimulus Pastorum, 1565), Prefácio, 2017, p. 5

sábado, 14 de junho de 2025

Em tudo o que existe está impresso o Nome da Trindade! - P. Manuel João Pereira Correia, MCCJ

 Em tudo o que existe está impresso o Nome da Trindade!

Ano C – Solenidade da Santíssima Trindade
João 16,12-15: “O Espírito da verdade vos conduzirá à plena verdade”

Hoje celebramos a solenidade da Santíssima Trindade. Durante o tempo da Quaresma e da Páscoa, experimentamos a ação salvífica do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Neste domingo, após Pentecostes, a Igreja nos convida a contemplar essa ação amorosa das três Pessoas divinas em sua unidade e sinergia.

A Santíssima Trindade é uma festa relativamente recente. Foi introduzida no calendário litúrgico no século XIV e colocada no domingo seguinte ao de Pentecostes, considerado o mais apropriado, visto que a Trindade foi plenamente revelada com a descida do Espírito Santo.

Não celebramos uma verdade do catecismo, encerrada numa formulação dogmática, nem um mistério enigmático. Trata-se de uma realidade viva, bela, surpreendente, que está no coração da boa nova do Evangelho e que São João resume na afirmação: “Deus é amor” (1 João 4,8).

O caminho rumo à fé na Trindade

Todos os cristãos professam a fé na Trindade: “Deus é um só em três Pessoas”. Não encontramos essa definição na Bíblia, e as primeiras gerações cristãs ainda não usavam a palavra “Trindade”. O primeiro a utilizá-la (Trinitas) foi Tertuliano, Padre da Igreja (+240). Sua utilização não foi uma invenção, evidentemente, mas fruto de sua meditação sobre a Sagrada Escritura.

No Novo Testamento, não faltam alusões a essa verdade de fé. A conclusão do Evangelho de Mateus nos oferece a fórmula trinitária mais explícita: “Ide, portanto, e fazei discípulos todos os povos, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mateus 28,19).

No contexto da fé profundamente monoteísta de Israel, podemos imaginar o quanto foi escandaloso que Jesus se proclamasse Filho de Deus e falasse da pessoa do Espírito Santo. Os primeiros cristãos foram realmente audaciosos ao dar início à fé na Trindade, que será claramente formulada apenas no século IV, nos Concílios de Niceia (325) e de Constantinopla (381). Somente uma convicção profunda, recebida por meio do ensinamento e do testemunho de Jesus, poderia torná-los tão ousados: “A Deus, ninguém jamais viu: o Filho unigênito, que é Deus e está no seio do Pai, foi quem o revelou” (João 1,18).

A Trindade, exigência do amor

Se, por um lado, o mistério da Trindade é difícil de compreender porque contraria a nossa lógica, por outro lado, podemos dizer que é simples, pois é uma exigência do próprio amor. Um Deus em uma única Pessoa seria solipsista: como poderia ser amor? Um amor entre dois poderia tornar-se um amor de reciprocidade, um amor espelhado, no qual os dois amantes se refletem um no outro: ainda é um amor imperfeito. É necessário um Terceiro, que encarne a diversidade e obrigue o amor a sair da lógica da reciprocidade para integrar o diferente.

Deus criou a humanidade “à sua imagem e semelhança” (Gênesis 1,26-27), mas o ícone da Trindade não é o casal, e sim a família: o casal fecundo que acolhe “o outro” e sai da lógica espelhada. Deus é Família. A humanidade carrega em si a marca trinitária. Na Trindade está encerrada a revelação de nossa identidade profunda e de nossa vocação.

Não apenas a família humana, mas toda a realidade traz essa marca trinitária, como diz Bento XVI: “Em tudo o que existe está, de certo modo, impresso o nome da Santíssima Trindade, porque todo ser, até às últimas partículas, é ser em relação; e assim transparece o Deus-relação, transparece, em última instância, o Amor criador. Tudo provém do amor, tende ao amor e se move impulsionado pelo amor, naturalmente com diferentes graus de consciência e de liberdade.” (Ângelus, 7 de junho de 2009)

Dois destaques sobre o Evangelho de hoje

Jesus fala da estreita relação que existe entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. A Santíssima Trindade só pode ser compreendida nesse entrelaçamento de relações. Deus é pura Relação. Isso é bem retratado no famoso ícone de Andrei Rublev que, inspirado no relato do Gênesis sobre a visita de Deus a Abraão, pinta três anjos sentados ao redor de uma mesa, cujos olhares se cruzam com infinita ternura.
Também nós somos convidados a entrar nessa intimidade. Podemos dizer que vive no seio da Trindade quem se compromete a criar vínculos, a tecer comunhão, a favorecer relações de fraternidade. “Se vês o amor, vês a Trindade”, diz Santo Agostinho.

Falando do papel específico do Espírito Santo, Jesus afirma que ainda teria muitas coisas a dizer, mas que os discípulos, por ora, não seriam capazes de suportá-las. Pensemos, por exemplo, no peso da Palavra da cruz, tão absurda e escandalosa (cf. 1Cor 1,18-30). Será o Espírito quem os guiará à plena verdade.
Pouco antes, Jesus havia dito a Pedro: “O que eu faço agora, tu não o compreendes; compreendê-lo-ás mais tarde” (João 13,7). Também nós ainda estamos entre esse “agora” e o “depois”. A verdade é um caminho a percorrer. Está sempre à frente, “além” de cada etapa. Só a alcançaremos “depois”, no fim. E cada um deve percorrer esse caminho pessoalmente. Por isso, a verdade deve ser proposta, com paciência e respeito, jamais imposta. Só o Espírito pode iluminar a mente, aquecer o coração e fortalecer a vontade para “nos guiar à plena verdade”.
“O Espírito é a sentinela na proa do meu navio. Anuncia terras que ainda não vejo. Eu dou-lhe ouvidos e aponto o leme na sua direção, e posso agir certo de que aquilo que tarda virá, comportar-me como se a rosa já tivesse florescido, como se o Reino já tivesse chegado.” (Ermes Ronchi)

Exercício de oração:

  1. Fazer o sinal da cruz no início do dia com uma consciência particular de vivê-lo em nome da Trindade.
  2. Repetir com frequência, durante o dia, como um respirar do coração, a doxologia:
    Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo.
  3. Rezemos com Santa Catarina de Sena:
    “Trindade eterna, és como um mar profundo, em que mais procuro e mais encontro; e quanto mais encontro, mais cresce a sede de te buscar. Tu és insaciável; e a alma, saciando-se no teu abismo, não se sacia, porque permanece na fome de ti, cada vez mais te deseja, ó Trindade eterna, desejando ver-te com a luz da tua luz.”

P. Manuel João Pereira Correia, MCCJ

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Babel e o Pentecostes Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia

 Crónicas PÁRA E PENSA

Babel e o Pentecostes

Anselmo Borges

Padre e Professor de Filosofia

Quando, este Domingo, se fala do Espírito

Santo e do Pentecostes, é preciso tomar

consciência de que só se alcança a sua

compreensão adequada, contrapondo o

Pentecostes a Babel e à sua Torre, esse

acontecimento mítico tão conhecido, descrito

no livro primeiro da Bíblia, o Génesis. É um

mito, mas o mito transporta consigo uma

verdade fundamental, "dá que pensar", como

escreveu o grande filósofo do século XX, Paul

Ricoeur.

Diz a Bíblia que Javé, ao ver a maldade dos

homens sobre a Terra, maldade que não

deixava de crescer, se arrependeu de ter criado

o Homen e se sentiu magoado no seu coração.

Por isso, mandou o dilúvio, mas renovou a sua

aliança com Noé e com a criação inteira, aliança

figurada, ainda que de forma ingénua, no arco-

íris, unindo o Céu e a Terra. Mas, um dia,

continua a narrativa do Génesis, os homens

disseram: construamos uma cidade e uma Torre

cujo ápice penetre nos céus. A Bíblia vê neste

projecto uma iniciativa de arrogância e orgulho

insensatos, aquela hybris – desmesura – que os

gregos também condenavam, porque arrasta

consigo a maldição e a catástrofe, o abismo da

destruição. No meio da arrogância e da

desmesura, os seres humanos, em vez de se

compreenderem e unirem, guerreiam-se e

matam-se nos horrores da barbárie. Aí está o

sentido bíblico da confusão das línguas.

Babel e a sua Torre é um mito de uma

actualidade dramática e mesmo trágica. Note-

se que em capítulos anteriores à narrativa da

Torre de Babel, o livro do Génesis fala do plano

de Deus que quer que a Humanidade cresça e

se multiplique em «povos que de dispersaram

por países e línguas, por famílias e nações».

Assim, o que está em causa neste mito não é de

modo nenhum a dispersão pela Terra nem a

variedade das línguas, que constitui uma

riqueza. O mito põe a nu e denuncia o

imperialismo dominador de uns sobre os

outros, na incapacidade do descentramento de

si para colocar-se no lugar do outro e, no

respeito pela alteridade insuprimível, entrar em

diálogo mutuamente enriquecedor. O mito é

uma advertência eloquente contra o desígnio

de dominação.

Precisamente em contraponto, noutro livro

da Bíblia, Actos dos Apóstolos, narra-se a

descida do Espírito Santo, no dia do

Pentecostes. «De repente, ressoou, vindo do

céu, um som comparável ao de forte rajada de

vento, que encheu toda a casa. Viram então

aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que

se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um

deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e

começaram a falar outras línguas, conforme o

Espírito lhes inspirava que se exprimissem.» Ao

ouvir o ruído, a multidão acorreu e todos

ficaram estupefactos, «pois cada um os ouvia

falar na sua própria língua». Atónitos e

maravilhados diziam: «Esses que estão a falar

não são todos galileus? Que se passa então,

para que cada um de nós os ouça falar na nossa

língua materna? Partos, medos, elamitas,

habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da

Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da

Panfília, do Egipto e das regiões da Líbia

cirenaica, colonos de Roma, judeus e prosélitos,

cretenses e árabes ouvimo-los anunciar, nas

nossas línguas, as maravilhas de Deus!».

No dia de Pentecostes, que deveria ser todos

os dias, na sua intenção mais profunda —, e

cada vez mais tomamos consciência disso — ,

quando se percebeu que o que tem de unir os

seres humanos é a justiça, o amor, a

solidariedade, a fraternidade, o respeito pela

igualdade, os seres humanos, todos, voltaram a

encontrar-se e entenderam-se. No Pentecostes,

restabelece-se a unidade desfeita com a Torre

de Babel. Trata-se, porém, da unidade na

diferença e da diferença na unidade. O amor de

Pentecostes une diferenças, sem uniformizar. E

abre horizontes novos de esperança à

Humanidade solidária.

Na actual situação do mundo globalizado e

mortalmente ameaçado, é urgência maior

pensar numa governança global (não digo um

Governo mundial, mas uma governança global),

para que o império da força da lei ponha limites

ao império da lei da força do mais forte — na

presente situação de crise global, vários pólos

do planeta se perfilam já com intenções de

domínio imperial global — e, neste contexto,

pensar no diálogo multicultural e inter-

religioso, em ordem à paz, à justiça, a uma

atitude nova de respeito e cuidado da

Natureza, a nossa casa comum, a uma vida

menos centrada no consumo imoderado, no

ter, e mais no ser, nesse milagre que é ser,

existir e conviver.

Dada a presente crise global, dramática ou

mesmo trágica, quando já sabemos que ou nos

salvamos todos ou nos perdemos todos, penso

que já se devia ter percebido que se impõe um

novo macro-paradigma para o desenvolvimento

e para as relações entre os povos, incluindo a

sua relação com a Natureza. Assim, sejamos

crentes ou não, é claro que isso implica uma

conversão, um espírito novo, que só pode ser o

Espírito Santo, espírito de verdade, de

liberdade, de igualdade, de fraternidade, de

alegria e paz.

Em toda a sua Históra, talvez nunca a

Humanidade tenha estado numa crise tão grave

como aquela que já se vive e se agrava cada vez

mais. É preciso tomar consciência da ameaça

de convulsões em cadeia e inclusivamente da

morte global. A Humanidade pode correr o

risco de cometer um suicídio colectivo.

Relembro uma entrevista recente na qual

um dos intelectuais mais influentes da

atualidade, Yuval Noah Harari, referia o que

qualquer um de nós, se não andar distraído,

constata: «Somos insaciáveis. Não interessa o

que tenhamos conseguido alcançar, queremos

sempre mais. Se temos um milhão, queremos

dois milhões, se temos dois milhões, queremos

dez milhões. O mesmo em relação ao poder:

nunca estamos satisfeitos com o que temos,

porque, na verdade, não sabemos como

traduzir esse poder em felicidade. Somos

milhares de vezes mais poderosos do que

éramos na Idade da Pedra, mas não somos

significativamente mais felizes. Se não

aprendermos a parar, a desacelerar, o mais

provável é que nos destruamos a nós e a todo o

ecossistema.» Concordando com Harari, julgo

que é preciso ir mais longe e mais fundo. Pascal

escreveu que a constituição do ser humano

mora ali algures entre o nada e o infinito (le

rien et l´infini). Assim, compreendemos que,

dada a dinâmica humana insaciável, a única

verdadeira tentação, desde o princípio, como se

escreve no Génesis, é querer “ser como Deus”.


sábado, 7 de junho de 2025

Os quatro Pentecostes - P. Manuel João Pereira Correia mccj

 Os quatro Pentecostes

Ano C – Tempo pascal - 8o domingo - Pentecostes
Evangelho: João 20,19-23

Hoje a Igreja celebra a grande solenidade do Pentecostes, a festa da descida do Espírito Santo, cinquenta dias depois da Páscoa, segundo a narração dos Actos dos Apóstolos (ver primeira leitura). O Pentecostes, que significa Quinquagésimo (dia), do grego, era uma festa judaica, uma das três festas de peregrinação ao templo de Jerusalém: a Páscoa, o Pentecostes e a Festa das Tendas (a festa das colheitas, no Outono). Trata-se de uma festa agrícola de acção de graças pela colheita dos primeiros frutos, celebrada no 50.º dia após a Páscoa. É também chamada de "Festa das Semanas", devido ao facto de ocorrer sete semanas após a Páscoa. Esta festa agrícola, mais tarde, foi associada também à recordação da entrega da Lei ou Torá por Moisés no Monte Sinai.

O Pentecostes cristão é o cumprimento e a conclusão do tempo pascal. É a nossa Páscoa, a passagem para uma nova condição, já não sob o domínio da Lei, mas do Espírito. É a festa do nascimento da Igreja e o início da Missão.

As leituras da festa apresentam-nos, de facto, quatro vindas do Espírito Santo ou quatro modos diferentes mas complementares da Sua presença. Eu diria que são quatro "Pentecostes"!

1. O Pentecostes da Igreja

A primeira leitura (Actos 2,1-11) apresenta-nos uma vinda do Espírito surpreendente, impetuosa e luminosa: 
Quando chegou o dia de Pentecostes, os Apóstolos estavam todos reunidos no mesmo lugar. Subitamente, fez se ouvir, vindo do Céu, um rumor semelhante a forte rajada de vento, que encheu toda a casa onde se encontravam. Viram então aparecer uma espécie de línguas de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes concedia que se exprimissem.
É uma vinda que suscita espanto e admiração, entusiasmo e euforia, consolação e coragem. É absolutamente gratuita, imprevisível e nunca programável. Trata-se de casos excepcionais. Encontramos alguns deles no livro dos Actos, mas houve-os também na história da Igreja, embora não tão vistosos e imponentes, mas sempre de grande fecundidade. De facto, o Pentecostes é sempre seguido de uma primavera eclesial. Deus sabe como precisamos dela, no inverno eclesial que estamos a atravessar no Ocidente! Só a oração incessante da Igreja, a humilde paciência do semeador e a docilidade ao Espírito podem obter uma tal graça!

2. O Pentecostes do mundo

A efusão do Espírito estende-se a toda a criação. É Ele "que dá vida e santifica o universo" (Oração Eucarística III). É Ele que "faz entrar o pólen primaveril no seio da história e de todas as coisas" (Ermes Ronchi). Por isso, com o Salmista, invocámos o Pentecostes sobre toda a terra: "Enviai, Senhor, o vosso Espírito e renovai a face da terra." (Salmo 103). Esta deveria ser uma oração típica e habitual do cristão: invocar o Pentecostes sobre o mundo, sobre as dinâmicas que regem a nossa vida social, sobre os acontecimentos da história. Toda a gente se queixa de "como o mundo vai mal!", do "mau espírito" que o anima, mas quantos de nós fazem a "epiclese" (invocação) do Espírito para que Ele desça sobre as pessoas, as situações e os acontecimentos da nossa vida quotidiana?

3. O Pentecostes dos carismas ou do serviço

O apóstolo Paulo, na segunda leitura (1 Coríntios 12), chama a nossa atenção para uma outra epifania do Espírito: os carismas. "Há vários carismas, mas um só é o Espírito.... A cada um é dada uma manifestação particular do Espírito para o bem comum..." Hoje fala-se muito de carismas e da partilha dos serviços eclesiais, mas há um crescente e preocupante desinteresse das gerações mais jovens. O sacramento da confirmação, o "Pentecostes pessoal", que deveria tornar-se a passagem para a plena participação na vida da Igreja, é infelizmente o momento da deserção. Um sinal claro de que falhámos no nosso objectivo de iniciação cristã. O que é que se deve fazer? A Igreja deverá dotar-se de um "ouvido" extremamente sensível e reforçar as suas "antenas" para perceber a Voz do Espírito neste momento particular da sua história. Atrevo-me a dizer que o problema mais grave é a mediocridade espiritual das nossas comunidades. Preocupados em salvaguardar a ortodoxia e a boa ordem da liturgia, perdemos de vista o essencial: a experiência de fé!

4. O Pentecostes do domingo

A liturgia propõe-nos de novo o evangelho da aparição de Jesus ressuscitado na tarde de Páscoa (João 20,19-23). Um evangelho cheio de ressonâncias pascais:
Na tarde daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas as portas da casa onde os discípulos se encontravam, com medo dos judeus, veio Jesus, apresentou-Se no meio deles e disse-lhes: «A paz esteja convosco». Dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado. Os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem o Senhor.
Jesus disse-lhes de novo: «A paz esteja convosco. Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós». Dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes: «Recebei o Espírito Santo: àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados; e àqueles a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos».

Este evangelho é chamado o "pequeno Pentecostes" do evangelho de S. João, porque aqui a Páscoa e o Pentecostes coincidem. O Ressuscitado oferece o Espírito na tarde de Páscoa. Todo este contexto faz pensar na reunião dominical e na Eucaristia. É aí que o Espírito "paira sobre as águas" (Gênesis 1,2) do caos e do medo da morte e traz a paz, a harmonia e a alegria da vida. O papel preeminente do Espírito deve ser redescoberto. Este é o Seu tempo. Sem Ele, não podemos proclamar que "Jesus é o Senhor" (I Coríntios 12,3), nem clamar "Abbá! Pai!" (Gálatas 4,6). Não há Eucaristia sem a intervenção do Espírito. Por isso, entremos na Eucaristia suplicando no nosso coração: Vinde, vinde, Espírito Santo!

Para concluir, como é que navegas no mar da vida: a remos ou à vela?

Respiramos o Espírito Santo. Ele é o oxigénio do cristão. Sem Ele, a vida cristã é lei e dever, é um remar constante, com esforço e cansaço. Com Ele, é a alegria de viver e de amar, é a leveza de navegar à vela. Agora que, depois do tempo pascal, retomamos o tempo comum, com a rotina da vida, como te preparas para navegar: com a força dos remos ou deixando-te levar pelo Vento que sopra na vela desfraldada do teu coração?

P. Manuel João Pereira Correia mccj

domingo, 1 de junho de 2025

A TEOLOGIA DEIXOU DE SER RESERVA DOS PADRES Frei Bento Domingues, O.P. 01 Junho 2025

 

A TEOLOGIA DEIXOU DE SER RESERVA DOS PADRES

Frei Bento Domingues, O.P.

01 Junho 2025

 

1. Na Páscoa deste ano, os católicos, e não só, sentiram a morte do Papa Francisco e acolheram o novo Papa, Leão XIV. Para os católicos, esta é uma referência que só tem sentido no seguimento dos acontecimentos de há 2 mil anos, em torno de Cristo.

Hoje, na liturgia católica, somos confrontados com o começo da Igreja contado em Os Actos dos Apóstolos. Como diz Frederico Lourenço, é uma obra superlativamente bem escrita que, para lá das suas magníficas qualidades literárias (dir-se-ia mesmo cinematográficas – tal é a vivacidade pictórica da narrativa, carregada de suspense e povoada de personagens retratadas com estudado realismo a viver situações extremas de perigo, pranto e exaltação), exerce também pela sua temática um especial fascínio, devido ao facto de nos descrever o dia seguinte após ter sido cumprida, na Terra, a missão de Jesus.

O livro tem um objectivo declarado de narrar as primeiras etapas do novo movimento religioso inspirado na vida e testemunho de Cristo e, sendo o herói da narrativa o apóstolo Paulo, este texto constitui, para muitos leitores ainda hoje, um documento fundamental para a reconstituição dos primórdios do cristianismo[i]. Trata-se do segundo livro de S. Lucas (Os Actos dos Apóstolos), que não pode ser entendido sem tomar a sério o primeiro livro (o seu Evangelho).

Ele próprio confessa: No meu primeiro livro, ó Teófilo, narrei as obras e os ensinamentos de Jesus, desde o princípio até ao dia em que, depois de ter dado, pelo Espírito Santo, as suas instruções aos Apóstolos que escolhera, foi arrebatado ao Céu. A eles também apareceu vivo depois da sua paixão e deu-lhes disso numerosas provas com as suas aparições, durante quarenta dias, e falando-lhes também a respeito do Reino de Deus.

No decurso de uma refeição que partilhava com eles, ordenou-lhes que não se afastassem de Jerusalém, mas que esperassem lá o Prometido do Pai, do qual – disse Ele – me ouvistes falar. João baptizava em água, mas, dentro de pouco tempo, vós sereis baptizados no Espírito Santo.

Estavam todos reunidos, quando lhe perguntaram: Senhor, é agora que vais restaurar o Reino de Israel? Respondeu-lhes: Não vos compete saber os tempos nem os momentos que o Pai fixou com a sua autoridade. Mas ides receber uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo. Dito isto, elevou-se à vista deles e uma nuvem subtraiu-o a seus olhos. E como estavam com os olhos fixos no céu, para onde Jesus se afastava, surgiram de repente dois homens vestidos de branco, que lhes disseram: Homens da Galileia, porque estais assim a olhar para o céu? Esse Jesus que vos foi arrebatado para o Céu virá da mesma maneira, como agora o vistes partir para o Céu[ii].

2. Se a religião dá um sentido especial à vida, as expressões desse sentido serão plurais. As religiões são diferentes. Aqui, interessa-me destacar um dos aspectos que a convicção cristã assume, neste Domingo da Ascensão de Cristo aos Céus. Se a abordagem da fé não é a da ciência[iii], é de boa higiene mental partir do princípio de que não estamos a falar de um lugar nem das vias de acesso a esse espaço que pudesse ser observado e descrito por qualquer ciência ou técnica, como se Jesus fosse um dos precursores dos astronautas. Basta de representações ridículas da fé. Na pregação, na catequese e na teologia, temos de reflectir sobre a linguagem que a Bíblia e o Credo cristão usam. As "leis" da linguagem simbólica, metafórica, parabólica, poética e narrativa existem para sugerir, dão que pensar, mas não obedecem a uma ligação circunscrita entre os significantes e os significados. Esse tipo de explicações mata a música da linguagem e não dá conta das transformações a que ela convida. A linguagem das transformações espirituais da existência não se lê nem se interpreta com um dicionário.

A Ascensão pode entender-se como a linguagem da fuga à manipulação política de Cristo pelas Igrejas. Jesus tinha vencido essas tentações, mas nunca estarão definitivamente resolvidas. Os Actos dos Apóstolos, a primeira história da Igreja, começam por essas permanentes ambições dos discípulos: Senhor, será agora que ides restaurar a realeza em Israel? Cristo parece cansado com essa pergunta recorrente. Dissera tantas vezes que não veio ao Mundo para mandar, mas para servir a esperança e a transformação da vida e eles sempre na mesma... Agora, confessa que só o Espírito de Deus lhes poderá dar a volta e é o único dom que ele tem para a Igreja.

É também recorrente a pergunta: onde estarão as pessoas que amamos e morreram? Não aconselho ninguém a ir ao cemitério. Creio que estão no coração de Deus, a casa definitiva de todos. Se me perguntam onde é e como é, atrevia-me a dizer que é tão grande como o amor de Deus, tão invisível e presente como Ele. Não procuro outro Céu.

3. Hoje, a teologia já não é reserva dos padres, como acontecia no passado. As mulheres ainda se queixam, e com razão, de lhes ser negado o acesso aos ministérios ordenados, mesmo quando são teólogas.

Uma freira austríaca, Martha Zechmeister, teóloga e professora em El Salvador, enviou uma carta aberta a Leão XIV. Depois de apontar vários aspectos semelhantes no seu percurso e no do novo Papa, insiste em que chegou o momento de alterar a situação de descriminação das mulheres, na Igreja, porque muito já se falou e escreveu.

Consta dessa carta o que a muitos poderá parecer um atrevimento. Não é. É apenas um direito e um dever cristão.

Escreve ao Papa Leão: «és um homem sensato e sensível. Ao ouvir a tua primeira mensagem breve e clara, senti-me muito grata, porque a tua sobriedade e racionalidade contrastam com o populismo irracional dos machões que dominam o mundo. E és canonista. Sabes quanto do aparato da Igreja não é devido ao direito divino, mas surgiu historicamente e é moldado pelo contexto e pela cultura; e quanto disso, portanto, pode mudar. A única coisa que deve ser cânone, regra firme para a forma como organizamos a Igreja, é a forma como Jesus formou a comunidade e como os seus discípulos se reuniram depois do encontro com o Ressuscitado e da efusão do Espírito no Pentecostes. Tudo o resto é obra humana e, portanto, modificável.

(…) Creio que chegou novamente a hora de derrubar muros e dar espaço ao Espírito vivo de Deus.

(…) Não quero que esta Igreja continue a ser um vestígio arcaico, reflectindo uma ordem social insustentável. Quero que ombro a ombro – mulheres e homens – transformemos este mundo. E, para isso, devemos começar já: com a plena integração das mulheres em todos os ministérios de liderança na Igreja. Não mais tarde. Agora.

Com determinação, amor pela Igreja e uma esperança ardente, a tua irmã, Martha».

Continuamos na celebração da Páscoa, Ascensão e Pentecostes. É nesta Luz que nós vemos a Luz!



[i] Cf. Frederico Lourenço, Bíblia, Vol. II – Novo Testamento. Apóstolos, Epístolas, Apocalipse, Quetzal, 2016, p.45

[ii] Act 1, 1-11

[iii] Cf. Francisco J. Ayala, Darwin y el Diseño Inteligente, Alianza, 2008.

 

sábado, 31 de maio de 2025

A Ascensão, a Cinderela das festas cristãs? - P. Manuel João Pereira Correia mccj

 

A Ascensão, a Cinderela das festas cristãs?

A festa da Ascensão não era celebrada até o século V. Considerava-se que fazia parte integrante da glorificação de Jesus ressuscitado (Filipenses 2,9-11). De fato, a Ascensão é a outra face da Ressurreição, ou seja, a elevação e a exaltação de Cristo.

O pastor e teólogo valdense Paolo Ricca (+2024) escreveu que a Ascensão se tornou “a Cinderela das festas cristãs”. É verdade: é uma festa pouco valorizada pela Igreja, talvez por seu aspecto de melancolia, devido à partida definitiva de Jesus. No entanto, “essa despedida não tem nada de um adeus: a tristeza, como o velho fermento, é varrida pela Páscoa…; a ascensão deixa no coração dos apóstolos ‘uma grande alegria’. A angústia pela partida do Senhor situa-se cronologicamente antes da Paixão; então os discípulos se entristecem como a mulher cuja hora chegou (…) Aqui se alude ao reencontro da Páscoa, e a alegria pascal não é perturbada pela ascensão ao céu” (H.U. von Balthasar).

A Ascensão nos traz uma mensagem alegre de uma dupla presença. Por um lado, o Senhor Jesus, “elevado ao céu”, garante, no entanto, sua presença na terra, no meio dos seus. Santo Agostinho diz: “Cristo não deixou o céu quando desceu até nós e não nos deixou quando subiu ao céu”. Por outro lado, estando nós ainda na terra, já estamos com Ele no céu, onde Ele – como “grande sacerdote na casa de Deus” – intercede por nós. Nossa verdadeira morada é em Deus, mas, com a encarnação, a morada de Deus é a humanidade. A Ascensão nos revela “o novo e vivo caminho que Ele [Jesus] nos abriu através do véu, isto é, da sua carne” (Hebreus 10,20-21, segunda leitura) e mostra que Jesus é a verdadeira “escada de Jacó” que conecta céu e terra (João 1,51).

A Ascensão, festa do envio

Gostaria de destacar a dimensão missionária da Ascensão, que nem sempre é suficientemente enfatizada. Geralmente, consideramos Pentecostes como a “festa da missão”, com a efusão do Espírito, o nascimento da Igreja e o início da pregação apostólica. Isso é verdade. No entanto, não podemos ignorar que o “mandato missionário” ocorre no dia da Ascensão. Hoje, portanto, é a festa do envio da Igreja em missão! A Ascensão é, ao mesmo tempo, o ponto de chegada para Jesus — o fim do seu ministério — e o ponto de partida para a Igreja, enviada em missão. Ao movimento vertical de Jesus em direção ao céu corresponde o movimento horizontal da Igreja em direção ao mundo. Jesus conclui sua missão na terra e se torna “invisível” para dar espaço, visibilidade e responsabilidade à missão dos seus discípulos na terra.

A missão vista a partir da Ascensão

O trecho do Evangelho de Lucas de hoje nos oferece algumas indicações sobre a missão:

  • O PROPÓSITO da missão: “Em seu nome serão anunciados a todos os povos a conversão e o perdão dos pecados”. Chama a atenção o fato de São Lucas considerar o convite à conversão e a remissão dos pecados como os dois aspectos prioritários da missão. Estamos bem distantes da sensibilidade atual. Como traduzir concretamente esse duplo anúncio como “boa notícia” é o grande desafio que a Igreja é chamada a enfrentar!

  • DESTINATÁRIOS, LUGARES e PROTAGONISTAS da missão: a pregação deve ser dirigida “a todos os povos”, ou seja, em todos os lugares; a missão não tem fronteiras e não exclui ninguém. Mas começa “a partir de Jerusalém”, para depois ir às periferias — uma “Igreja em saída”, como dizia o Papa Francisco. Jerusalém como ponto de partida garante a continuidade — não sem rupturas (veja o Concílio de Jerusalém em Atos 15) — entre o antigo e o novo Israel. A Jerusalém histórica é o ponto de partida, mas a Jerusalém celeste, a meta final da missão. Os protagonistas da missão não são apenas os Doze, mas todos os discípulos de Cristo, em comunidade, porque o envio é coletivo.

  • A MODALIDADE da missão: “Disso sois testemunhas”. O evangelista destaca sobretudo a dimensão missionária do testemunho. Esse testemunho é possível graças à nova compreensão da Palavra: “Então lhes abriu a mente para compreenderem as Escrituras” (Lucas 24,45); e ao poder do Espírito: “E eis que enviarei sobre vós aquele que meu Pai prometeu; permanecei, porém, na cidade até que sejais revestidos da força do alto” (24,49). A alegria e o louvor são a primeira forma de testemunho: “Então voltaram para Jerusalém com grande alegria e estavam continuamente no templo, bendizendo a Deus” (24,52-53). Tudo isso é conhecido em nível de ideias, mas quanto essas dimensões fundamentais da missão — a Palavra, o Espírito, a Alegria e o Louvor — pesam de fato na nossa programação e prática?

  • A missão sob o signo da BENÇÃO: “Enquanto os abençoava, afastou-se deles e foi levado ao céu”. A bênção é a última ação de Jesus na terra. A missão acontece sob esta bênção, fonte de Louvor e Alegria. Sem ela, facilmente caímos na tentação da murmuração, do desânimo e da tristeza — ou seja, na “maldição”!

A missão reaviva a esperança da espera

Segundo os Atos, dois anjos da Ascensão anunciam aos apóstolos: “Este Jesus, que dentre vós foi levado ao céu, virá do mesmo modo como o vistes subir”. A Ascensão implica a esperança do retorno de Cristo para nos levar com Ele.

A missão tem também como tarefa manter viva a esperança e ajudar a Igreja a manter acesa a lâmpada da fé na expectativa da volta do Esposo. Sobre o retorno de Cristo, de fato, paira uma das mais inquietantes perguntas do evangelho: “Mas, quando o Filho do Homem vier, encontrará fé sobre a terra?” (Lucas 18,8).

P. Manuel João Pereira Correia, mccj


P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com


Optimismo-pessimismo: a ambiguidade do mundo - Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia

 Optimismo-pessimismo:

a ambiguidade do mundo

Anselmo Borges

Padre e Professor de Filosofia

Foi Leibniz que, numa obra célebre –

Teodiceia -, na qual, perante a existência do

mal, queria defender e justificar Deus, se

apresentou como arauto do optimismo. O

nosso mundo é o melhor dos mundos

possíveis.

Leibniz era um cristão convicto e,

portanto, Deus, entre os mundos possíveis,

tinha de ter criado o melhor. De facto, se

este nosso mundo criado não fosse o

melhor, haveria a possibilidade de outro

2

melhor, o que significaria que ou Deus não

tinha conhecido esse mundo melhor ou não

o tinha querido ou não tinha podido criá-lo,

o que contradiz a sua omnisciência, a sua

bondade infinita e a sua omnipotência.

Veio o terramoto de Lisboa em 1755, que

tornava impossível a manutenção de ideias

optimistas. Voltaire escreveria o famoso

“Poema sobre o desastre de Lisboa”, onde

pede aos filósofos enganados que venham

ver as mulheres e as crianças empilhadas

umas sobre as outras, todos esses

desgraçados enterrados debaixo dos seus

tectos, terminando os seus dias no horror

dos tormentos.

Voltaire escreveu também o Cândido,

onde escalpeliza a ideia de que tudo

contribui para o melhor. O optimismo de

Pangloss e a candura de Cândido vêem-se

confrontados com a realidade bruta do mal:

as desgraças humanas causadas pelas

3

catástrofes naturais, pela estupidez

humana, pelas instituições, pelas guerras,

pela avareza, pela superstição, pela

escravatura, pela hipocrisia, pelo tédio, por

todo o tipo de exploração...

Se, para Leibniz, o nosso é o melhor dos

mundos possíveis, para Arthur

Schopenhauer, é precisamente o contrário:

este é o pior dos mundos possíveis. Existir é

sofrer.

Segundo Schopenhauer, o mundo na

sua realidade última é vontade, mas

vontade cega. Tudo é impulsionado pela

vontade de viver, uma vontade infinita

nunca saciada, de tal modo que os nossos

impulsos e desejos nunca encontram

satisfação. O optimismo não passa de

escárnio frente à dor sem fim nem limites

da humanidade.

Schopenhauer acompanha-nos pelos

hospitais, pelas cadeias, pela selva (pensa-se

4

pouco na dor dos animais), pelos campos de

batalha, pelos matadouros, pelas câmaras

de tortura, por todas as moradas da miséria.

A necessidade é o açoute permanente dos

humanos, mas, quando a satisfazem,

entram no tédio e desejam outra coisa – a

vida é como um pêndulo entre a dor e o

tédio. No fim, o destino é a solidão atroz,

pois cada um, no mais profundo, está

sempre sozinho. Depois, é a morte.

Pergunta-se: Devemos ser optimistas ou

pessimistas? O mundo tal como se nos

apresenta exige o optimismo ou a única

atitude razoável é o pessimismo? O

optimismo celebra o óptimo, que é o

superlativo absoluto simples de bom. O

pessimismo deixa-se derrotar pelo péssimo,

que é o superlativo absoluto simples de

mau.

Mas o mundo nem é óptimo nem é

péssimo. O mundo é ambíguo, uma mistura

5

de bem e de mal. E nele fazemos

experiências negativas de contraste:

deparamo-nos com a negatividade, mas

sempre como aquilo que não devia ser, isto

é, em confronto com a positividade. Isto

significa que nos vivemos a nós mesmos no

mundo na perplexidade. O mundo não nos

aparece como completamente absurdo e,

por isso, perguntamos, à procura de um

sentido, de sentido último.

A própria Bíblia, que é toda atravessada

pela esperança, não é de modo nenhum

ingénua nem ignora o horror do mundo. O

livro de Job é paradigmático. Job, inocente,

açoitado pela desgraça, ousa erguer a voz

em quase blasfémia, quer levar Deus a

tribunal e chega a amaldiçoar ter nascido:

“Job tomou a palavra e disse: ‘Desapareça o

dia em que nasci e a noite em que foi dito:

‘Foi concebido um varão!’ Porque não morri

no seio da minha mãe? Por que razão foi

6

dada luz ao infeliz e vida àqueles para

quem só há amargura? Esses esperam a

morte que não vem e procuram mais do que

um tesouro; esses saltariam de júbilo e se

alegrariam por chegar ao sepulcro.”

De qualquer modo, no meio de uma

história de calvário, a Bíblia é uma gritaria

por liberdade, sentido e salvação...

Num mundo comum, que crentes e não

crentes habitam, o que os separa é a

interpretação que dão a esse mundo

ambíguo. E não é pelo facto de o serem que

os crentes o interpretam de uma

determinada maneira, o mesmo

acontecendo aliás com os descrentes ou os

ateus. Pelo contrário, uma determinada

interpretação é que leva à fé ou ao ateísmo,

mas de tal modo que a fé, a descrença, o

agnosticismo ou o ateísmo aparecem aos

crentes, aos descrentes, aos agnósticos e aos

ateus, respectivamente, como a melhor

7

maneira de interpretar e dar sentido à

existência e à realidade ambígua.

À maneira de apêndice, fica a pergunta,

absurda, mas cujo propósito, na sua

dimensão de abismo sem fundo, se entende:

Se me fosse dado escolher, teria escolhido

nascer, vir ao mundo? Faça-se a pergunta,

pensando na Ucrânia, Gaza, África onde

umas 18.000 crianças morrem todos os dias

de fome ou vítimas de umas 25 guerras em

curso, em Myanmar...: Quantos teriam

escolhido ter nascido?

A outra pergunta: O que se impõe para

melhorar o mundo?

Sábado, 31 de Maio de 2025

segunda-feira, 26 de maio de 2025

O novo normal Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia

 Crónicas PÁRA E PENSA

O novo normal

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

1. Há dias, Ursula von der Leyen fez

uma comunicação de abalo e despertar.

Nela, referiu que “hoje aumentam as

tensões geopolíticas. As regras

comerciais estão a ser reescritas”,

caindo-se numa guerra comercial

global. “Acontecimentos climáticos

extremos são cada vez mais frequentes,

devido às mudanças climáticas. A

mudança nas tecnologias é cada vez

mais rápida”, apresentando o exemplo

da IA (inteligência artificial), que está a

evoluir mais rapidamente do que

2

imaginaríamos há algum tempo...

Para rematar: “The ‘new’ normal is

anything but ‘normal’.” O ‘novo normal

é tudo menos ‘normal’.”

2. Entretanto, uma boa amiga

escreveu-me nestes termos:

“Estou tão triste, meu amigo.

Que mundo vamos deixar aos jovens?

Que planeta?

Que pessoas?

Onde vamos buscar esperança?”

3. Ah! Se, nesta corrida vertiginosa e

louca em que embarcámos, cada uma,

cada um, parasse! Para pensar. Pensar

vem do latim “pensare”, que quer dizer

pesar razões e, portanto, reflectir,

meditar..., para ir ao essencial.


O crente irradiação da Shekinah de Deus - Pe. Manuel João Pereira Correia, mccj

 

O crente irradiação da Shekinah de Deus

Ano C – Tempo Pascal – 6º Domingo
João 14,23-29: “Viremos a ele e faremos nele a nossa morada.”

Aproximamo-nos das festas da Ascensão e de Pentecostes. O Evangelho deste domingo, como o do domingo passado, oferece-nos um trecho do longo discurso de despedida de Jesus durante a Última Ceia. Ao anunciar a sua partida, o ambiente enche-se de tristeza. O abatimento, a perplexidade e o medo percorrem os discípulos. Jesus tranquiliza-os, convidando-os a não temer (cf. Jo 14,1.27) e promete que a sua tristeza se transformará em alegria (Jo 16,20.22).

O dom da paz e o Paráclito

Jesus procura garantir a coesão do grupo dos discípulos. No domingo passado, o Senhor entregou-lhes – e a nós – o mandamento do amor. Hoje oferece a paz: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz.” Notemos bem: Jesus não deseja a paz, Ele a dá! Aquela que fora a sua paz, agora a entrega a nós. Uma paz tão forte e profunda que nem mesmo a perseguição a pode suplantar.

Além disso, Jesus promete outro dom: o Espírito Santo. “O Paráclito, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, Ele vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que Eu vos disse.”
Repetidamente, no seu discurso, Jesus reafirma esta promessa do envio do Espírito (Jo 14,16-17; 14,26; 15,26; 16,7-11; 16,13-15), acrescentando a cada vez novos detalhes sobre a missão do Espírito Santo, chamado a continuar a obra de Jesus.

É o Espírito Santo que torna sólida e duradoura a paz do cristão, pois Ele é o nosso Paráclito – Parákletos em grego –, ou seja, o “Advogado” que está ao nosso lado como defensor e consolador. Se o pequeno e desorientado grupo dos apóstolos, composto por pessoas humildes e analfabetas, conseguiu revolucionar a história do mundo, isso só se pode explicar com a ajuda de uma força divina: o Espírito Santo!

A angústia de uma ausência

O discurso de despedida de Jesus gira em torno do anúncio da sua partida iminente, que perturba profundamente o grupo. Quatro apóstolos fazem quatro perguntas a tal propósito. O número quatro é símbolo de totalidade e universalidade (como os quatro pontos cardeais). Os quatro – Pedro, Tomé, Filipe e Judas – representam cada um de nós. As perguntas que fazem a Jesus são também as nossas, aquelas que teríamos feito então e que continuamos a fazer hoje.

Entramos numa fase crítica de “mudança de época”, de contornos ainda obscuros, um desafio inédito: estimulante para alguns, inquietante para outros. Na nossa cultura ocidental, muitos crentes vivem esta crise como um “inverno eclesial” e uma “noite escura” da fé. A atmosfera daquela noite no Cenáculo pode simbolizar e iluminar o nosso presente de aparente “eclipse” de Deus.

1. Pedro: generosidade e fragilidade. A primeira pergunta é de Pedro. Ao anúncio da partida, Simão Pedro pergunta a Jesus: “Senhor, para onde vais?”. Jesus responde: “Para onde Eu vou, não podes seguir-me agora; seguir-me-ás mais tarde.” Pedro insiste: “Senhor, por que não posso seguir-Te agora? Darei a minha vida por Ti!”
Pedro é a imagem do discípulo decidido e generoso, que ama o seu Senhor, mas não leva em conta a própria fragilidade (cf. Jo 13,36-38). Quantas vezes também nós fizemos promessas semelhantes, para depois agir com covardia na hora da verdade. O Senhor não se escandaliza com a nossa fraqueza. Ele sabe esperar: “Seguir-me-ás mais tarde!”

2. Tomé: voluntariedade e incerteza. Jesus esclarece o objetivo da sua “viagem”: “Vou preparar-vos um lugar.” E acrescenta: “E do lugar para onde Eu vou, conheceis o caminho.”
Intervém Tomé, o discípulo prático e concreto, teimoso e voluntarioso: “Senhor, não sabemos para onde vais; como podemos conhecer o caminho?”
Também nós, muitas vezes, gostaríamos que o Senhor fosse mais explícito e claro na nossa vida. Com tantos caminhos atrativos diante de nós, sentimos-nos frequentemente desorientados.
Jesus responde: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim” (Jo 14,2-6). O Pai é o destino, e Jesus é o caminho para lá chegar, através da sua palavra e do seu exemplo.

3. Filipe: idealismo e concretismo. Jesus acrescenta ainda: “Se me conhecestes, também conhecereis o meu Pai; desde agora o conheceis e o vistes.”
Imagino que o grupo tenha ficado bastante perplexo com esta afirmação do Mestre, perguntando-se entre si quando teriam visto o Pai. É certo que Jesus falara continuamente do Pai, chegando a dizer que Ele e o Pai eram “um só” (Jo 10,30). Mas o Pai, na verdade, nunca O tinham visto!
Então intervém Filipe e pede: “Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta!” (Jo 14,8-10). Filipe, a meu ver, é o tipo de discípulo bom, idealista e simples. Também nós, por vezes, gostaríamos de “ver” sem mediações. No entanto, Jesus insiste: é preciso passar pela mediação do Filho. “Quem me vê, vê o Pai”; “Crede-me: Eu estou no Pai e o Pai está em mim.”

4. Judas: pragmatismo e impaciência. O quarto discípulo a intervir é Judas, não o Iscariotes, talvez Judas Tadeu ou um primo de Jesus. Quando Jesus fala de se manifestar a eles, aos discípulos, ele exclama, um tanto surpreso: “Senhor, como se explica que Te manifestarás a nós, e não ao mundo?”
Judas é o tipo de discípulo pragmático e impaciente com o rumo que os acontecimentos estão a tomar. A sua é uma observação bastante justa e razoável, diríamos. Eles, os discípulos, já O conheciam e acreditavam n’Ele. Jesus deveria manifestar-se com sinais e prodígios aos que ainda não criam.
A mesma coisa já Lhe tinham dito os seus parentes: “Se fazes estas coisas, manifesta-Te ao mundo” (Jo 7,3-5). A mesma, exata coisa diríamos muitos de nós hoje. Com crescente preocupação vemos diminuir o número de crentes, muitas vezes ridicularizados e perseguidos. Os valores evangélicos têm cada vez menos influência na sociedade. A guerra e a injustiça alastram... E Deus permanece em silêncio!

A surpresa de uma nova presença

O trecho do Evangelho de hoje apresenta a resposta de Jesus a Judas.
Começa com uma revelação extraordinária: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e o meu Pai o amará, e viremos a ele e faremos nele a nossa morada.”
Aquele que os céus não podiam conter; que no passado se limitava a visitar os seus amigos Abraão, Jacó, Moisés...; que Se fazia presente na Arca da Aliança; que consentiu estabelecer a sua morada (Shekinah) no Templo; que nos últimos tempos Se tornara “Emanuel”, Deus no meio de nós... agora dá um passo ulterior e estabelece a sua Shekinah no coração do crente!

É algo inaudito, uma realidade misteriosa, íntima e profunda, que talvez ainda não tenhamos interiorizado. São Paulo percebeu isso muito bem quando afirmou que somos o Templo de Deus (cf. 1Cor 3,17 e 6,19; veja também 2Cor 6,16; Ef 3,17; Rom 8,11).

Talvez achemos isso grande demais para ser verdade. Ou, quem sabe, temos receio de ser acusados de pietismo, de intimismo ou de espiritualismo? Contudo, não há um “evangelho” mais belo e, ao mesmo tempo, mais revolucionário. O coração do crente – movido pelo amor e por uma fé operosa – torna-se uma espécie de rede (web) de relações de comunhão e de interação entre a humanidade e Deus.

Mas não pensemos que Deus espera uma recepção cinco estrelas! Basta-Lhe um coração simples e aberto: com uma mesa, uma toalha e uma flor fresca; o pão e uma jarra de água fresca (ou melhor ainda, uma garrafa de vinho!) sobre a mesa; algumas cadeiras em volta; e a porta entreaberta, convidando o viandante.

A cada um de nós cabe a fantasia e a criatividade para traduzir tudo isso em gestos concretos e num estilo de vida. Então seremos a irradiação da Shekinah, da Morada de Deus, testemunhas da Ressurreição!

Pe. Manuel João Pereira Correia, mccj

 

 




terça-feira, 20 de maio de 2025

A verdadeira novidade é o amor - P. Manuel João Pereira Correia, mccj

 A verdadeira novidade é o amor

Ano C - Tempo Pascal - 5º Domingo

Leituras: Actos 14,21-27; Salmo 144; Apocalipse 21,1-5;

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João 13,31-35: “Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros”.

 

Com os dois últimos domingos do tempo pascal, entramos na preparação imediata para as festas da Ascensão e do Pentecostes. São os domingos da despedida. O Evangelho deste domingo e do próximo oferece-nos excertos do discurso de despedida de Jesus aos seus discípulos na Última Ceia. É o seu testamento, antes da sua paixão e morte.

Porquê retomar estes textos precisamente no tempo pascal? A Igreja segue a antiga tradição de ler, durante este período, os cinco capítulos do Evangelho de João relativos à Última Ceia (capítulos 13 a 17), nos quais Jesus apresenta o sentido da sua morte e da sua “Páscoa”.

Além disso, poderíamos dizer que, tratando-se de um legado, o testamento deve ser aberto após a sua morte. Jesus deixa a sua herança, os seus bens, a nós, seus herdeiros. A sua herança por excelência é o mandamento do amor, tema da passagem evangélica de hoje.

 

1. Uma palavra une as três leituras de hoje: NOVO ou NOVIDADE.

 

Na primeira leitura, dos Actos dos Apóstolos, encontramos a notícia contada por Paulo e Barnabé à Igreja de Antioquia, que os tinha enviado em missão: “como Deus tinha aberto a porta da fé aos gentios”;

Na segunda leitura, tirada do Apocalipse, João vê “um novo céu e uma nova terra” e “a cidade santa, a nova Jerusalém, que desce do céu, vinda de Deus”, e ouve a Voz que diz: “Eis que faço novas todas as coisas”;

No Evangelho, Jesus dá-nos “um mandamento novo”.

Vivemos numa sociedade onde predomina o tédio, sobretudo entre os jovens. Precisamos de estímulos constantes, de novidades, para tornar os nossos dias mais atraentes. Infelizmente, muitas vezes confundimos novidade com diversidade. As novidades que nos são propostas são muitas vezes uma reciclagem do antigo, pelo que envelhecem rapidamente, deixando-nos desiludidos e insatisfeitos.

Por outro lado, as verdadeiras novidades assustam-nos porque perturbam os nossos princípios e o nosso modo de vida. Exigem que “nasçamos de novo”, como disse Jesus a Nicodemos (João 3,3).

Se isto é verdade para cada cristão, é igualmente verdade para cada comunidade cristã e para toda a Igreja. A fidelidade à Tradição não pode dissimular a tentação de cair no passado, em tradições antigas e ultrapassadas. A acusação feita à Igreja de estar ancorada ao passado deve fazer-nos questionar a nossa abertura ao sopro inovador do Espírito.

A escuta e o acolhimento da Palavra, que nos propõe a novidade, exigem de nós uma grande abertura de mente e de coração. O perigo é o de nos fecharmos ao novo, o que traz sempre alguns estragos à nossa vida. Pior ainda seria se esta Palavra ressoasse nos nossos ouvidos como “velha”, só porque a ouvimos tantas vezes! Peçamos, pois, ao Senhor que faça de nós “odres novos” para recebermos o seu “vinho novo”!

 

2. Uma nova GLÓRIA

 

“Quando Judas saiu [do Cenáculo], Jesus disse: 'Agora o Filho do Homem foi glorificado, e Deus foi glorificado nele'”.

Ao escutar o Evangelho de hoje, a nossa atenção dirige-se imediatamente para o “mandamento novo”, mas esta novidade é introduzida por uma outra, incompreensível, chocante e escandalosa, porque parece subverter a nossa visão da realidade.

Quando Judas sai para o entregar, em vez de exprimir tristeza e dor, Jesus fala de “glorificação” - e fá-lo cinco vezes. Jesus liga a sua glória, e a glória de Deus, à traição de Judas! De que glória se trata, então? A de ser levantado na cruz, porque a cruz é a manifestação máxima do amor de Deus.

Judas encarna a mentalidade do Messias “vencedor”; Jesus, pelo contrário, manifesta-se como um Messias “perdedor”. O verdadeiro Messias adopta a lógica do amor. “É por isso que o Pai me ama: porque dou a minha vida para a retomar” (Jo 10,17), disse o Bom Pastor no domingo passado.

 

Esta visão invertida da realidade é um murro no estômago quando comparada com a nossa constante busca de “vanglória”. Perguntemo-nos, então: que tipo de glória procuro, nos meus pensamentos, desejos, fantasias e intenções para as minhas acções? O tipo de glória que procuramos revela se temos fé ou não. Pois Jesus diz-nos: “Como podeis crer, vós que recebeis glória uns dos outros e não procurais a glória que vem do único Deus?” (João 5,44).

 

3. Um novo MANDAMENTO

 

“Filhinhos, por mais um pouco de tempo estou convosco. Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros”. (Ver também Jo 15,12 e 15,17).

Em que consiste esta novidade?

É “nova” porque não é espontânea nem natural, não nasce do instinto.

É nova porque se caracteriza pela gratuidade e não pela reciprocidade.

É novo porque abole o velho “olho por olho e dente por dente”.

É nova porque ultrapassa a sabedoria do antigo preceito: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Levítico 19,18).

É novo porque agora o padrão do amor é Jesus: “Como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros”.

É novo sobretudo porque nunca envelhecerá. O que vive no tempo envelhece, mais cedo ou mais tarde. Mas o que pertence aos “novos céus e à nova terra” não envelhece mais, porque participa da eternidade de Deus.

É novo porque é final e definitivo, escatológico, isto é, do fim. A fé e a esperança passarão, mas só o amor permanecerá (1 Cor 13,13). Porque o amor é a própria essência de Deus: “Deus é amor” (1Jo 4,8). Por isso, já não faz sentido distinguir entre o amor a Deus e o amor aos irmãos, entre o amor “vertical” e o amor “horizontal”, porque o amor é um só.

Este tipo de amor será o critério supremo para reconhecer o discípulo de Jesus:

“Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros.”

 

4. Como obter este novo AMOR?

 

Diz-se que o coração não pode ser comandado. Como, então, adquirir este amor? Contemplando-o na Eucaristia, onde este amor é celebrado. “Fixando o olhar em Jesus” (Hebreus 12,2). Contemplando com amor e ternura o Crucificado, onde este amor se consuma. Ou, nas palavras de São Daniel Comboni, dirigindo-se aos seus missionários:

“Mantenham sempre os olhos fixos em Jesus Cristo, amando-o ternamente e procurando compreender cada vez melhor o que significa um Deus morto na cruz para a salvação das almas. Se, com fé viva, contemplarem e saborearem um mistério de tal amor, serão bem-aventurados por se oferecerem para perder tudo e morrer por Ele e com Ele”. (Escritos, 2721-2722)

 

P. Manuel João Pereira Correia, mccj