Crónicas PÁRA E PENSA
Alguém quer ser santo?
Anselmo Borges
Padre e Professor de Filosofia
Vale! era a saudação latina: Saúde, passa bem,
passai bem! Aliás, a própria palavra saudação tem
também a ver com saúde e com salvação (salus,
salutis). Saudar vem do latim: salutem dare (dar,
desejar saúde). Ainda se diz nas aldeias: 'negar a
salvação a alguém', com o sentido de recusar-se a
cumprimentar uma pessoa. Saudade tem aqui
igualmente o seu étimo. Veja-se, por exemplo, a
expressão: mandar muitas saudades. A saudade é
aquele sentimento de solidão que tem na sua base
a falta da pessoa querida. Ter saudades e enviar
saudades é aquele desejo de que quem partiu e
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anda longe, esteja onde estiver, passe bem... Por
sua vez, saúde refere-se sempre àquela situação em
que o ser humano na sua totalidade está bem. A
saúde tem a ver com o todo holisticamente
considerado, numa situação de integração e
equilíbrio harmoniosos: saúde somática, saúde
psíquica, saúde social, saúde ecológica, saúde
espiritual, implicando, portanto, uma relação sã
consigo, com os outros, com a natureza, com
Deus...
Tudo isto por causa do dia 1 de Novembro. É
possível que muitos portugueses pensem que esse
dia é feriado nacional por causa dos mortos. Mas
não é verdade: é feriado nacional por causa da
celebração da Festa de Todos os Santos.
Aí está algo que praticamente ninguém que
alguma vez tenha pensado nisso (mas quantos
pensaram?) quereria ser: santo. Até porque os
santos com os quais habitualmente contactamos
julgamos que são aquelas figuras geralmente pouco
belas, torcidas e até por vezes ridículas que vemos
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em muitos altares das igrejas e que são levadas a
“passear” pelas ruas uma vez por ano nas
procissões das romaria. Mesmo quando nos
reportamos àqueles homens e àquelas mulheres
reais de carne e osso, que aquelas figuras
quereriam representar, vemo-los a maior parte das
vezes como beatos, tristes, a bichanar orações,
desagradados com a vida, deprimidos, ascetas a
quem não é permitido apreciar as coisas boas e
belas da existência...
No entanto, se pensássemos bem, é mesmo isso
que queremos ser: santos. Porque santo, também
etimologicamente, tem a ver com saúde. E o que é
que nós fazemos sem saúde? Santo e são têm a
mesma raiz. E isso tanto nas línguas latinas como
nas anglo-saxónicas — dizemos: aquele homem
está são e também dizemos São João; em inglês:
holy (santo), health (saúde), em conexão com the
whole (o todo harmónico já apontado)... Há
sempre essa conexão entre saúde, santidade,
salvação e totalidade harmónica. Só estamos sãos,
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se tudo em nós estiver bem: uma dor da alma ou
uma simples unha encravada colocam-nos em
desequilíbrio. Ser santo significa, repito, harmonia
toda: estar de bem consigo, com os outros, com o
mundo, com a natureza, com o divino... Assim, por
exemplo, quem despreza o mundo não é santo. O
desequilíbrio é o contrário da santidade, que
consiste precisamente na plenitude harmónica e
expansiva.
De qualquer modo, nos dias 1 e 2 de Novembro,
o que, de facto, lembramos mais são os mortos. Nas
nossas sociedades, urbanas, científicas e técnicas,
onde o que mais se valoriza é o aparecer, o
parecer, o dinheiro, a eficácia, a juventude, o light,
o ter, o poder, o êxito, e onde, por isso mesmo, a
morte é tabu e sobre a morte se mente às crianças
e mentimos a nós mesmos e uns aos outros,
permite-se até certo ponto que os mortos, os
defuntos, surjam dois dias por ano no convívio dos
vivos. Os cemitérios enchem-se, embora cada vez
menos. Aí, há uma lembrança, uma recordação.
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Talvez se erga, sem palavras, uma prece. E surge
uma inquietação: o que é o Homem? O padre
António Vieira respondeu: “pó levantado”. Com
isso, ele queria apelar à humildade, aquela
humildade que não anula a dignidade. Pelo
contrário: o ser humano humilde é o ser humano
(homem ou mulher) bom, digno e verdadeiro. E
precisamente a bondade, a dignidade e a verdade
no combate pela justiça, a fraternidade e a paz,
pertencem ao núcleo do que se chama santo,
também em ligação constituinte com a esperança:
no meio das dúvidas, perplexidades, injustiças e
horrores, a esperança da plenitude da vida eterna
em Deus...
Sábado, 1 de Novembro de 2025
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