sábado, 15 de novembro de 2025

A fé convive com a dúvida - Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia

 A fé convive com a dúvida

Anselmo Borges

Padre e Professor de Filosofia

Insisto constantemente em que no Novo

Testamento há duas “definições” de Deus —

evidentemente, Deus não é definível, mas são

tentativas de dizer algo sobre o seu mistério. Na

Primeira Carta de São João, está escrito que Deus é

Agapê, Amor incondicional. O Evangelho segundo

São João começa com estas palavras: “No princípio

era o Logos, o Logos estava Deus e o Logos era Deus.

Por Ele é que tudo começou a existir.” Logos significa

palavra, razão, inteligência. Deus é, portanto, Amor

e Razão e, assim, a existência humana e cristã

autêntica resultará da convergência e

interpenetração da bondade e da razão, da

inteligência e do amor. Portanto, a fé não só não

pode contradizer a razão como deve ser razoável e,

como diz a Primeira Carta de São Pedro, é preciso

“dar razões da esperança”. E, como tentei explicar

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na crónica da semana passada, não há resposta

definitiva constringente para o que é a realidade na

sua ultimidade. É no próprio acto de fé que o crente

experiencia o carácter razoável da sua adesão

confiante livre.

Assim, tanto o crente como o ateu, a partir do

mundo comum, que é ambíguo, arrancam de

perguntas humanas radicais — qual é o Fundamento

e o Sentido último? —, e as suas respectivas

respostas de fé ou descrença representam

interpretações da realidade, mas nestes precisos

termos, como escreveu o filósofo da religião Andrés

Torres Queiruga: "não se interpreta o mundo de

uma determinada maneira porque se é crente ou

ateu, mas é-se crente ou ateu porque a fé ou a

descrença aparecem aos respectivos sujeitos como o

modo melhor de interpretar o mundo comum".

Deste modo, também no domínio da fé há uma

"verificação": se o crente dá a sua adesão à fé é

porque comprova que a "hipótese religiosa" é a que

melhor ilumina as questões últimas da vida e da

morte, a realidade do mundo e da história; o

agnóstico confessará que não acha razões

suficientes para decidir-se; o ateu apoia-se na

convicção de que têm mais peso as razões contra a

existência de Deus. Como se não cansava de repetir

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Pedro Laín Entralgo, só o penúltimo é certo, o último

é e não pode não ser incerto.

Deste modo, torna-se claro que a fé convive com a

dúvida, como já observou Santo Tomás de Aquino e,

para dar exemplos, já aqui citei algumas vezes a

situação angustiante de Santa Teresinha do Menino

Jesus quando as dúvidas da fé a assaltavam. De

qualquer modo, erguer-se-á sempre aquela terrível

pergunta: Como é que Deus é compatível com tanto

mal, tantos horrores no mundo?

Hoje quero chamar a atenção para o querido Papa

Francisco, tão sensível também ele ao problema do

mal, na sua autobiografia, que foi e é um best-seller,

com o título ESPERANÇA. Termina assim: “Uma vez,

um jovem universitário perguntou-me: na

universidade tenho muitos amigos que são

agnósticos ou ateus, o que devo dizer para que se

tornem cristãos? Nada, disse eu. A última coisa que

deves fazer é falar. Primeiro, deves fazer, e então

será quem vê como vives, como geres a tua vida,

que irá perguntar: por que razão o fazes? Então,

poderás falar. No testemunho de uma vida, a palavra

vem depois, é consequência. Deixar também um

espaço para a dúvida, também esta é uma chave

importante”. E acrescenta: “Se uma pessoa diz que

encontrou Deus com certeza total, então não está

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bem. Se alguém tem respostas para todas as

perguntas, esta é a prova de que Deus não está com

ele. Quer dizer que é um falso profeta, que

instrumentaliza a religião, que a usa para si mesmo.

Os grandes guias do povo de Deus, como Moisés,

sempre deixaram espaço para a dúvida. É necessário

sermos humildes, deixar espaço ao Senhor, não às

nossas fingidas seguranças. A ternura não é

fraqueza: é a verdadeira força. É a estrada que os

homens e as mulheres mais fortes e corajosos

percorreram. Percorramo-la, lutemos com ternura e

com coragem. Percorrei-a, lutai com ternura e com

coragem... Eu sou apenas um passo.”

Quereria fechar esta crónica talvez pouco

sistematizada, observando que é essencial pensar

que, lá no mais fundo, quando a pergunta é a

pergunta pelo Sentido último, se está confrontado

com a questão decisiva: a Vida plena, eterna, em

Deus, ou o nada.

Sábado, 15 de Novembro de 2025

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