A fé convive com a dúvida
Anselmo Borges
Padre e Professor de Filosofia
Insisto constantemente em que no Novo
Testamento há duas “definições” de Deus —
evidentemente, Deus não é definível, mas são
tentativas de dizer algo sobre o seu mistério. Na
Primeira Carta de São João, está escrito que Deus é
Agapê, Amor incondicional. O Evangelho segundo
São João começa com estas palavras: “No princípio
era o Logos, o Logos estava Deus e o Logos era Deus.
Por Ele é que tudo começou a existir.” Logos significa
palavra, razão, inteligência. Deus é, portanto, Amor
e Razão e, assim, a existência humana e cristã
autêntica resultará da convergência e
interpenetração da bondade e da razão, da
inteligência e do amor. Portanto, a fé não só não
pode contradizer a razão como deve ser razoável e,
como diz a Primeira Carta de São Pedro, é preciso
“dar razões da esperança”. E, como tentei explicar
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na crónica da semana passada, não há resposta
definitiva constringente para o que é a realidade na
sua ultimidade. É no próprio acto de fé que o crente
experiencia o carácter razoável da sua adesão
confiante livre.
Assim, tanto o crente como o ateu, a partir do
mundo comum, que é ambíguo, arrancam de
perguntas humanas radicais — qual é o Fundamento
e o Sentido último? —, e as suas respectivas
respostas de fé ou descrença representam
interpretações da realidade, mas nestes precisos
termos, como escreveu o filósofo da religião Andrés
Torres Queiruga: "não se interpreta o mundo de
uma determinada maneira porque se é crente ou
ateu, mas é-se crente ou ateu porque a fé ou a
descrença aparecem aos respectivos sujeitos como o
modo melhor de interpretar o mundo comum".
Deste modo, também no domínio da fé há uma
"verificação": se o crente dá a sua adesão à fé é
porque comprova que a "hipótese religiosa" é a que
melhor ilumina as questões últimas da vida e da
morte, a realidade do mundo e da história; o
agnóstico confessará que não acha razões
suficientes para decidir-se; o ateu apoia-se na
convicção de que têm mais peso as razões contra a
existência de Deus. Como se não cansava de repetir
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Pedro Laín Entralgo, só o penúltimo é certo, o último
é e não pode não ser incerto.
Deste modo, torna-se claro que a fé convive com a
dúvida, como já observou Santo Tomás de Aquino e,
para dar exemplos, já aqui citei algumas vezes a
situação angustiante de Santa Teresinha do Menino
Jesus quando as dúvidas da fé a assaltavam. De
qualquer modo, erguer-se-á sempre aquela terrível
pergunta: Como é que Deus é compatível com tanto
mal, tantos horrores no mundo?
Hoje quero chamar a atenção para o querido Papa
Francisco, tão sensível também ele ao problema do
mal, na sua autobiografia, que foi e é um best-seller,
com o título ESPERANÇA. Termina assim: “Uma vez,
um jovem universitário perguntou-me: na
universidade tenho muitos amigos que são
agnósticos ou ateus, o que devo dizer para que se
tornem cristãos? Nada, disse eu. A última coisa que
deves fazer é falar. Primeiro, deves fazer, e então
será quem vê como vives, como geres a tua vida,
que irá perguntar: por que razão o fazes? Então,
poderás falar. No testemunho de uma vida, a palavra
vem depois, é consequência. Deixar também um
espaço para a dúvida, também esta é uma chave
importante”. E acrescenta: “Se uma pessoa diz que
encontrou Deus com certeza total, então não está
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bem. Se alguém tem respostas para todas as
perguntas, esta é a prova de que Deus não está com
ele. Quer dizer que é um falso profeta, que
instrumentaliza a religião, que a usa para si mesmo.
Os grandes guias do povo de Deus, como Moisés,
sempre deixaram espaço para a dúvida. É necessário
sermos humildes, deixar espaço ao Senhor, não às
nossas fingidas seguranças. A ternura não é
fraqueza: é a verdadeira força. É a estrada que os
homens e as mulheres mais fortes e corajosos
percorreram. Percorramo-la, lutemos com ternura e
com coragem. Percorrei-a, lutai com ternura e com
coragem... Eu sou apenas um passo.”
Quereria fechar esta crónica talvez pouco
sistematizada, observando que é essencial pensar
que, lá no mais fundo, quando a pergunta é a
pergunta pelo Sentido último, se está confrontado
com a questão decisiva: a Vida plena, eterna, em
Deus, ou o nada.
Sábado, 15 de Novembro de 2025
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