domingo, 24 de agosto de 2025

Para falar, ouvir o Silêncio Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia

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Crónicas PÁRA E PENSA

Para falar, ouvir o Silêncio

Anselmo Borges

Padre e Professor de Filosofia


Mesmo correndo o risco de repetições,

volto ao tema, porque a ameaça temível

da verborreia oca não cessa de

aumentar...

Sim, é verdade. Quando comparamos

o ser humano e os outros animais,

notamos que a linguagem duplamente

articulada é característica decisiva dos

humanos. Foi sobretudo a partir do

século XVIII que se deu essa

compreensão: até encontramos

caricaturas com um missionário no meio

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da selva africana dizendo a um macaco:

“Fala, e eu baptizo-te”. Se falasse, era

humano. Evidentemente, esta fala refere-

se ao que é próprio do ser humano: dupla

articulação da linguagem.

Pela palavra, abrimo-nos ao mundo e

o mundo abre-se a nós. Falando, damos

razão disto ou daquilo, argumentamos,

comprometemo-nos, formamos

comunidade. Sendo a razão humana

linguisticizada, só podemos compreender-

nos a nós próprios em corpo, com outros

e na História.

O Homem, pelo facto de ser “zôon

lógon échon”, animal que tem lógos

(razão e linguagem), é também “zôon

politikón”, animal social, político,

diferentemente do animal, que é

gregário, e a razão disso é a palavra,

como bem viu Aristóteles, na Política: “A

razão de o Homem ser um ser social,

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mais do que qualquer abelha e qualquer

outro animal gregário, é clara. Só o

Homem, entre os animais, possui a

palavra”. E continua: “A voz é uma

indicação da dor e do prazer; por isso,

têm-na também os outros animais. Pelo

contrário, a palavra existe para

manifestar o conveniente e o

inconveniente bem como o justo e o

injusto. E isto é o próprio dos humanos

face aos outros animais: possuir, de

modo exclusivo, o sentido do bem e do

mal, do justo e do injusto e das demais

apreciações. A participação comunitária

nestas funda a casa familiar e a cidade”.

A linguagem humana não se reduz à

expressão emotiva do prazer e do

desprazer. É capaz de fazer juízos

morais, de distinguir o bem e o mal, o

justo e o injusto, partilhar e debater

publicamente estas apreciações. Deste

modo, a linguagem está na base da ética

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e funda eticamente a pólis (a cidade, no

sentido da vida política).

Percebe-se assim que o ser humano é

constitutivamente dialogante. Aliás, o que

é, logo à partida, pensar senão falar

consigo mesmo? Damos tantas vezes

connosco a falar connosco — isso mesmo,

a dialogar connosco no mais íntimo de

nós, quando precisamos de deliberar e

vamos apresentando razões a favor e

razões contra uma determinada tomada

de posição.

Precisamos de falar connosco. É

preciso falar, dialogar em família. Quando

o diálogo morre numa família, o amor vai

esmorecendo e caminhando também para

a morte. Mas hoje, desgraçadamente,

parece que não há tempo para dialogar

em família, porque o barulho invasor das

televisões— o que lá vai de

comentadores, tantas vezes ignaros! —

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toma conta de tudo. E os telemóveis e

quejandos, meu Deus!... Já se diz que a

“Última Ceia” do século XXI representa

Jesus com as mãos à cabeça, aflito,

porque os Apóstolos estão todos

entretidos a olhar e a “dedar”

entusiasmados nos seus smartphones!...

Por outro lado, quem não faz silêncio,

quem não medita (significativamente,

meditação, medicina e moderação têm a

mesma proveniência: o verbo latino

mederi — a raiz é med: pensar, medir,

julgar, tratar um doente —, que significa

cuidar de, tratar, medicar, curar), quem

não ouve a Palavra originária, que fala no

silêncio, pode produzir tempestades de

palavras, mas elas são ocas ou até

perniciosas. Porque então a palavra já

não existe para “manifestar o

conveniente e o inconveniente bem como

o justo e o injusto”. Ora, não é isso que

tantas vezes se passa nas campanhas

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eleitorais e nos Parlamentos? E também

em muitas homilias de padres e bispos e

discursos de todo o género? Como faz

falta a palavra poética, criadora,

revigoradora e que cura! Ah, sim, pela

palavra, animamos alguém, damos-lhe

força, esperança, abrimos-lhe futuro.

Com uma palavra podemos curar alguém,

mas também podemos “matar”, destruir-

lhe a vida.

Tudo fica abalado, quando os sofistas e

a sofística tomam conta do espaço

público e privado. Nunca mais se vai ao

essencial. E tudo se agrava agora com a

ameaça da banalização total das redes

sociais. Para isso chama a atenção um

comentário aceso e paradigmático do

grande Umberto Eco, pouco antes de

morrer: “As redes sociais concedem o

direito de palavra a legiões de imbecis

que antes falavam só no bar depois de

um copo de vinho, sem danos para a

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colectividade. Eram imediatamente

remetidos ao silêncio enquanto agora têm

o mesmo direito de palavra de um Prémio

Nobel. Assistimos à invasão dos imbecis.”

É, pois, urgente dar espaço e tempo

ao silêncio. E também à oração. Sim, à

oração. Para colocar o ser humano em

contacto com o Mistério último da

realidade e da vida. Dialogar com o mais

fundo da Vida. Estar ligado ao

Fundamento, à Fonte, ao Sentido último.

Para se não perder na dispersão,

completamente desorientado,

desorientada, sem referências, perigo

maior do nosso tempo.

Mas a oração e o que é essencial

exigem o salto para fora do barulho

ensurdecedor. Que se faça silêncio. Num

tempo em que se é invadido e esmagado

pelo tsunami das informações, entrando

no mundo caótico da dispersão e da

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fragmentação, da “agitação paralisante e

da paralisia agitante”, segundo a

expressão do famoso bispo do Porto, D.

António Ferreira Gomes, é urgente parar,

fazer pausa. Para ouvir o silêncio. Sim,

ouvir o silêncio. No meio da vertigem dos

vendavais de palavras em que vivemos,

que nos atordoam e paralisam, ouvir

outra coisa. Ouvir o quê? Isso: o silêncio.

Só depois de ouvir o silêncio será possível

falar, falar com sentido e palavras novas,

seminais e iluminantes, criadoras. De

verdade. Onde se acendem as palavras

novas, seminais, iluminadas e

iluminantes, criadoras, e a Poesia, senão

no silêncio, talvez melhor, na Palavra

originária, criadora, que fala no silêncio?

Ouvir o quê? Ouvir a voz da consciência,

que sussurra ou grita no silêncio. Quem a

ouve? Ouvir o quê? Ouvir na noite o

silêncio da noite e também na noite

contemplar o alfobre das estrelas. Ouvir

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música, a grande música, aquela que diz

o indizível e nos transporta lá, lá, ao

donde somos e para onde

verdadeiramente queremos ir: a nossa

morada. Ouvir o quê? Ouvir a sabedoria.

Sócrates, o filósofo grego, o mártir da

Filosofia, que só sabia que não sabia,

consagrou a vida a confrontar a retórica

sofística com a arrogância da ignorância e

a urgência da busca da verdade. Falava,

mas só depois de ouvir o seu daímon, a

voz do divino e da consciência.

O grande filósofo A. Comte-Sponville é

partidário de um “ateísmo místico”, no

quadro de “uma espiritualidade sem

Deus”. Mas constituinte dessa

espiritualidade é precisamente o silêncio.

“Silêncio do mar. Silêncio do vento.

Silêncio do sábio, mesmo quando fala.

Basta calar-se, ou, melhor, fazer silêncio

em si (calar-se é fácil, fazer silêncio é

outra coisa), para que só haja verdade,

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que todo o discurso supõe, verdade que

os contém a todos e que nenhum

contém. Verdade do silêncio: silêncio da

verdade.”

O problema está em que já Pascal,

nos Pensamentos, se queixava: “Toda a

desgraça dos homens provém de uma só

coisa, que é não serem capazes de

permanecer em repouso num quarto.”

Hoje é ainda pior do que no tempo de

Pascal. Ninguém suporta o silêncio. Sinal

extremo disso: Quem ousa ouvir, em

todo o seu abismo, o silêncio da morte no

silêncio de um rosto morto, que nos cala

e nos abala até à raiz de nós e ao fundo

abissal do ser? No entanto, é em silêncio

que, na noite do mistério, se pode

entrever a luz da verdade do amor e da

morte e do Sentido final. Por isso, é

preciso constantemente pedir com Sophia

de Mello Breyner: “Deixai-me com as

coisas/Fundadas no silêncio.”

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Há um preceito sufi que reza: “Se a

palavra que vais dizer não for mais bela

do que o silêncio, não a digas”. Se este

preceito fosse cumprido, poderia estar a

caminho o casamento feliz, humanizante

e criador da Fala e do Silêncio.

N. B.: Estas crónicas ficam suspensas

até Outubro.

Sábado, 23 de Agosto de 2025

sábado, 23 de agosto de 2025

Confiança sim leviandade não! - P. Manuel João Pereira Correia mccj

 Confiança sim leviandade não!

Ano C – 21.º Domingo do Tempo Comum
Lucas 13,22-30: “Esforçai-vos por entrar pela porta estreita”

O Evangelho deste domingo lembra-nos que estamos a caminho com Jesus rumo a Jerusalém. Estar a caminho é a condição, o modus vivendi do cristão. “Não temos aqui uma cidade permanente, mas vamos à procura da futura” (Hebreus 13,14). Somos “estrangeiros e peregrinos” (1 Pedro 2,11). Peregrinamos em direcção a uma meta que está diante de nós, sempre “mais além”. Nunca podemos esquecer esta realidade essencial da vida cristã.

Pelo caminho o Mestre encontra muitas pessoas. Hoje alguém lhe pergunta: “Senhor, são poucos os que se salvam?”. Essa pessoa poderia ser um de nós. De facto, chama-o “Senhor”. Também nós consideramos importante a questão. Está em jogo, na verdade, a nossa salvação. Vejamos como Jesus responde a esta pergunta.

1. “Esforçai-vos por entrar pela porta estreita”

Esperávamos números ou percentagens, mas Jesus, como tantas outras vezes, recusa satisfazer a nossa curiosidade. Responder directamente poderia alimentar falsas seguranças, por um lado, ou incutir medo e desânimo, por outro. Como profeta, Jesus adverte os seus ouvintes: “Esforçai-vos por entrar pela porta estreita, porque muitos, digo-vos, procurarão entrar e não conseguirão”! No texto paralelo de São Mateus lemos: “Entrai pela porta estreita, porque larga é a porta e espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são os que entram por ele. Quão estreita é a porta e apertado o caminho que conduz à vida, e poucos são os que o encontram!” (Mt 7,13-14). Portanto, não só a porta é estreita, mas também é apertado o caminho que leva até ela!

Qual é a porta estreita? A Porta é Cristo (cf. Jo 10,7.9). Mas por que é estreita? Porque passa pela cruz. E é estreita não apenas no espaço, mas também no tempo. É uma porta que, mais cedo ou mais tarde, se fechará. Esta perspectiva leva o autor da Carta aos Hebreus a dizer: “Exortai-vos mutuamente, cada dia, enquanto dura este Hoje” (Heb 3,13).

Este trecho evangélico pode ser ainda iluminado pelo que Jesus disse após a recusa do chamado “jovem rico”: “Quão difícil é, para os que possuem riquezas, entrar no reino de Deus. É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus!” (Lc 18,24-25; cf. Mc 10,23-25; Mt 19,23-24). Aqui fala-se em passar pelo “buraco de uma agulha”! Jesus usa uma hipérbole semítica: uma imagem propositadamente exagerada e paradoxal, para indicar o impossível. Alguns autores supõem que Jesus se referia a uma pequena porta secundária nas muralhas de Jerusalém, chamada “buraco da agulha”, tão baixa e estreita que um camelo só podia passar de joelhos e descarregado da sua carga. Mesmo que seja provavelmente uma elaboração simbólica tardia, a imagem é sugestiva. O camelo, animal ritualmente impuro, era símbolo da riqueza, do comércio e da abundância. Perguntemo-nos: o nosso “camelo” passará pelo “buraco da agulha”? Só tornando-se pequeno, ajoelhando-se e despindo-se o conseguirá!

2. “Não sei de onde sois”

“Quando o dono da casa se levantar e fechar a porta, vós, ficando de fora, começareis a bater à porta, dizendo: ‘Senhor, abre-nos!’. Mas ele responderá: ‘Não sei de onde sois’”.

Estamos diante de uma das palavras mais duras do Evangelho. São Lucas é o evangelista da misericórdia e da mansidão de Cristo, e contudo aqui Jesus surpreende-nos com uma linguagem demasiado drástica. Como conciliá-la com a parábola em que todos são convidados para o banquete: “os pobres, os coxos, os cegos e os aleijados” (Lc 14,15-24)? Procurávamos uma resposta tranquilizadora e, em vez disso, o Senhor abala as nossas convicções.

Jesus dirige-se aos seus contemporâneos, ao povo de Israel, mas São Lucas pensa nos crentes da sua comunidade, onde se instalou o laxismo, onde alguns se acomodaram julgando-se já “salvos”, com pleno direito de participar no banquete celeste.

Notemos bem: Jesus fala de nós, que escutámos a sua palavra, comemos e bebemos com Ele na mesa eucarística. Isto recorda-nos que não basta participar na Missa ou frequentar os ritos para sermos reconhecidos por Ele. É preciso reconhecê-lo também nas estradas da vida, no faminto, no sedento, no estrangeiro, no nu, no doente e no preso (cf. Mt 25,31-46).

Esta palavra de Jesus soa como uma ameaça, mas as “ameaças” de Deus existem para nunca se cumprirem! Têm como finalidade despertar-nos do torpor, recordar-nos a seriedade da vida e o sentido da responsabilidade! Portanto, confiança na bondade e misericórdia de Deus, SIM. Sempre e em qualquer circunstância! Facilitismo, NÃO! Nunca! Não existe um cristianismo de baixo custo! Negligência, leviandade e presunção de que “tudo correrá bem” à partida levam a construir a casa sobre a areia. A humildade e a prudência, pelo contrário, edificam-na sobre a rocha (cf. Mt 7,24-27).

“Afastai-vos de mim, todos vós que praticais a injustiça!”. Então acabou-se tudo? É a sentença final, irrevogável? Resta-nos a palavra de Jesus: “O que é impossível aos homens é possível a Deus” (Lc 18,27).

3. “E eis que há últimos que serão primeiros, e há primeiros que serão últimos”

Esperemos surpresas! Diz Santo Agostinho: “Naquele dia muitos que se julgavam dentro descobrir-se-ão fora, enquanto muitos que pensavam estar fora serão encontrados dentro”. Com espanto, alguns que julgávamos dos últimos vemo-los recebidos no Paraíso com tapete vermelho, enquanto nós teremos de nos tornar pequenos para conseguir passar pela portinha do “buraco da agulha”!

Para reflexão pessoal

Meditemos neste texto de São Paulo: “Cada um veja como constrói. Ninguém pode colocar outro alicerce além do que já está posto, que é Jesus Cristo. E se, sobre este alicerce, alguém edificar com ouro, prata, pedras preciosas, madeira, feno, palha, a obra de cada um ficará à vista: o Dia a manifestará, porque se revelará no fogo, e o fogo provará a qualidade da obra de cada um. Se a obra resistir, receberá recompensa; mas se a obra de alguém se queimar, esse sofrerá prejuízo; ele, porém, será salvo, mas como que através do fogo.” (1 Coríntios 3,10-15)

P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com
https://comboni2000.org

 

terça-feira, 19 de agosto de 2025

T imor Loro Sae, de cinza e sonho se faz um Povo! - P. Armindo Janeiro, Presidente da UASP

 Promovido pela UASP - União das Associações dos Antigos Alunos dos Seminários Portugueses, um grupo de antigos alunos, familiares e amigos (18 participantes), entre os dias 14 e 28 de julho, viajou até ao outro lado do Mundo para conhecer a alma de um Povo que renasceu das cinzas!

É verdade que o objetivo do projeto "Por mares dantes navegados" é partilhar a alegria do Evangelho com povos irmãos do mundo lusófono; foi assim nas cinco etapas africanas e o mesmo aconteceu nesta viagem missionária ao sudeste asiático: conhecer e celebrar os caminhos do Evangelho, servidos por tantos homens e mulheres que destas bandas partiram para aquelas terras e ali se doaram totalmente para que o Evangelho fosse conhecido, acolhido e se enraizasse, dando origem a tão belas e nobres respostas de fé.
Ao longo da nossa permanência naquele país, uma pergunta, feita de admiração e respeito, me vinha repetidamente ao pensamento: como é que um pequeno povo, disperso por metade da ilha de Timor, do enclave de Oecússi e das ilhas de Ataúro e Jaco cujas fronteiras resultam de um acordo entre Portugal e a Holanda (1859), pôde resistir e ganhar o direito a existir entre potências regionais que disputaram e distribuíram entre si os seus recursos
naturais?
Começámos as visitas do último dia, no Museu da Resistência que narra a conquista dramática da liberdade por aquele país irmão!... Não obstante a desproporção, o Povo timorense ganhou o direito a existir com sangue derramado de cerca de meio milhão de Timorenses Loro Sae! Com determinação e, finalmente, com ajudas várias, fez ouvir a sua voz e atrair boas vontades para a sua causa. O seu futuro tem esta humildade e grandeza!
Seguimos, depois, para a Igreja de Motael e o Cemitério de Santa Cruz, lugares determinantes da história timorense. De tarde, visitámos a Catedral, a Escola Amigos de Jesus e o Centro Juvenil P. António Vieira, por onde passa - ali e em muitos outros lugares - a invenção do futuro daquela jovem nação.
Aliás, foi a visita a muitas instituições e projetos semelhantes que ocupou grande parte da nossa estadia em Timor-Leste.
Damos graças a Deus pelo trabalho generoso, dedicado e com poucos meios, que pessoas, ordens religiosas e outras instituições estão a fazer pelo bem daquelas populações, principalmente em campos como a educação e a saúde.
Uma das evidências, que surpreende qualquer ocidental, é ver como a fé cristã se enraizou na alma daquele Povo, dando-lhe suporte na perseguição e alento na resistência; hoje alimenta a esperança de tantos projetos de desenvolvimento humano, espiritual e cultural; e é assumida como princípio inspirador para o futuro daquela Nação do Sol Nascente.
P. Armindo Janeiro

DE CABO VERDE A TIMOR LOROSAE - Alfredo Monteiro (AAAFranciscanos) - UASP

 Pelos céus já dantes cruzados chegámos ao outro lado do mundo! Foram precisas cerca de 20

horas a voar nas alturas e, duas vezes, descendo à terra firme, Istambul e Bali! Em razão da
acentuada diferença do fuso horário, confesso que até deixei escapar um dia da semana!…

Para escrever sobre Timor Lorosae e o seu mui nobre e invicto Povo, permitam-me que
invoque o grande Camões e lhe peça, humildemente, um pouco de “engenho e arte”.
“ Ali também Timor, que o lenho manda/ Sândalo salutífero e cheiroso/ Olha a Sunda tão larga que ua banda/Esconde para o Sul dificultoso/ A Gente do sertão, que as terras anda,/ Um rio diz que tem miraculoso, / Que, por onde ele só, sem outro vai, / Converte em pedra o pau que nele cai” (Os Lusíadas).

…Tudo começou, em 2014, por Cabo Verde. Uma pequena comunidade, em média de 20
peregrinos, caminharam juntos há mais de 10 anos! Depois, pela Guiné-Bissau, São Tomé e
Príncipe e Ilhéu das Rolas, Angola, Moçambique e, finalmente, Timor Leste! Sobrou ainda
tempo para redescobrir a Madeira e Porto Santo e as ilhas de São Miguel e Terceira nos
Açores.

Diz o poeta que é “…pelo sonho que vamos e chegamos…” E assim foi! A UASP, no âmbito do
projecto “Por Mares dantes navegados”, antes sonhado, atingiu mesmo o outro lado do
mundo, Timor Lorosae! “… Se mais houvera lá chegara…”. Cumprindo os valores e objectivos
inerentes à sua identidade e missão:
– Celebrar a Fé, vivida e comprometida nas periferias reais e existenciais, pisando o chão
escaldante das terras africanas e asiáticas, em comunhão com a Igreja pobre e missionária;
– Conhecer a história de povos irmãos, as suas tradições e manifestações culturais;
– Levar abraços de proximidade e de fraternidade, com gestos de solidariedade, ajudando a
consolidar a Esperança em dias melhores, de Paz e Prosperidade; muitos ainda a viverem em
situação de extrema pobreza.

Não foi diferente esta última viagem missionária em Timor Lorosae. Que povo acolhedor!
Pudemos sentir a proximidade das pessoas, a alegria e o sorriso cândido das crianças, as
saudações amigas e afectuosas, os gestos de humildade e simplicidade que nos marcaram
profundamente! Um povo que resistiu heroicamente à destruição e morte, aos massacres da
invasão e ocupação, durante 24 anos, da Indonésia que teve a bênção da Austrália e dos
Estados Unidos. Na visita ao Museu da Resistência e ao Cemitério de Santa Cruz lemos e
sentimos a história escrita com sangue e a “Alma de um Povo que renasceu das cinzas”. Uma
Nação jovem que se levanta à altura das suas belas e exuberantes montanhas! A resistência de um Povo “valente e imortal” que, com as armas apanhadas ao inimigo e uma vontade
inquebrantável, cantou a vitória final da Independência e da Liberdade! Para isso, deu-se a feliz conjugação do abraço entre o Tetum, a Igreja Católica (fiéis, clero e consagrados) e a língua portuguesa.

Assistiu-nos a graça da companhia do padre Noé, timorense, carmelita descalço. Foram duas semanas muito cheias, cultural e espiritualmente, colhendo a riqueza de novas experiências de vida. Uma aprendizagem que fica gravada na alma e no coração! Por terra, ar e mar, caminhos difíceis de terra solta, montanhas íngremes, sob um sol madrugador e abrasador… Aventura suavizada pela união e solidariedade de um grupo samaritano onde os mais fortes cuidavam dos mais frágeis e que se habituaram a caminhar juntos nestas longas viagens missionárias. Dili, Tibar, o enclave de Oecusse, Lifau, Maliana, Aí Pelo (antiga prisão
colonial), Maubara, Malibó, Baucau, Laleia, Manatuto, ilha de Ataúro, Beloi, Aileu e Maubisse.

Conhecemos as três dioceses. Porém, destaco o nosso encontro e acolhimento amigo e
fraterno com as Irmãs da Santíssima Eucaristia e da Mãe de Deus; as Irmãs Franciscanas da
Divina Providência; as Irmãs Carmelitas Descalças; Irmãs Clarissas e Irmãs Reparadoras de Nossa Senhora de Fátima; Irmãs Concepcionistas ao Serviço dos Pobres; Irmãs Canossianas, Irmãs Missionárias Franciscanas de Nossa Senhora. Demos graças a Deus pelos relevantes Projectos Sociais que desenvolvem com perfeita alegria e total disponibilidade. Vidas dedicadas inteiramente a Deus, à Igreja e aos mais pobres.

Finalmente, em modo de descanso, dois dias na estância turística de Bali (Indonésia) onde o
Criador foi particularmente generoso com a Natureza. Um guia local conhecedor profundo da
Ilha, dos seus deuses, dos costumes e tradições culturais conduziu-nos por recantos turísticos
e históricos, transmitindo, em português, os seus muitos saberes! Recomendou-nos a atenção
aos atrevidos macacos, peritos na arte do roubo de óculos e telemóveis!…. Fechámos o último
dia do nosso longo itinerário, domingo, com chave de ouro, na participação da Eucaristia.
Percorremos a pé, sob um sol impiedoso, cerca de quilómetro e meio, a distância do Hotel à
Igreja, Mas valeu a pena! Os fiéis eram chamados pelo rufar dos tambores. Um templo amplo
e pleno de luz que nos acolheu fraternalmente, estrangeiros, cedendo-nos o conforto dos
melhores lugares nos cómodos bancos da Igreja. A celebração, no maior país de religião
muçulmana, encheu-nos a alma! A alegria, os cânticos, a harmonia litúrgica dos acólitos, a
clareza dos leitores, a dança sincronizada no ofertório, a distribuição da sagrada comunhão
pelos leigos, a bênção final pelo celebrante, às crianças e bebés ao colo dos pais, tudo sem
pressa! Prática e cultura religiosa ausente na maioria das nossas paróquias.

E na manhã do dia 28, depois de tantas horas, a tentar dormir às prestações, a cerca de 12 mil
metros de altitude, aterrámos felizes, em Lisboa, em trânsito para Fátima, o nosso ponto de
encontro…

Alfredo Monteiro (AAAFranciscanos)

domingo, 17 de agosto de 2025

Acontecimento trágico. Temas para reflexão Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia

 Crónicas PÁRA E PENSA

Acontecimento trágico.

Temas para reflexão

Anselmo Borges

Padre e Professor de Filosofia

Esta é a notícia trágica: nos últimos cinco anos

suicidaram-se na Índia pelo menos 13 padres

católicos — em média, um a cada seis meses; nos

primeiros cinco meses deste ano de 2025, já se

suicidaram dois... Evidentemente, a situação é

alarmante e obriga a Igreja na Índia, e não só, a

uma reflexão profundíssima.

Não vou entrar directamente no tema. Mas,

aproveitando este acontecimento trágico e o

facto de estarmos ainda no início de um novo

pontificado, deixo aí três momentos de reflexão

inevitável, que não pode de modo nenhum

continuar a ser adiada, tanto mais quanto,

mesmo entre nós, o número de padres está em

2

queda vertiginosa, aumentando sem cessar o

número de paróquias sem padre.

Em termos simples.

1. A Igreja não pode impor como lei o que

Jesus entregou à liberdade. Que é que isto quer

dizer? É necessário acabar com a lei do celibato

obrigatório para os padres. Aliás, essa lei é

relativamente recente e, mesmo hoje, há padres

na Igreja católica normalmente com família — é

o caso na Igreja oriental ou de convertidos da

Igreja anglicana. Concretizando, pergunta-se:

porque é que, dentro de determinados critérios,

não hão-de voltar ao ministério padres que

tiveram de abandonar levados pelo amor e

constituindo família?

2. Jesus não discriminou as mulheres.

Assim, a Igreja também não pode discriminá-las

também no que se refere aos ministérios. Isso é

contra a vontade de Jesus e contra os direitos

humanos. Herbert Haag, talvez o maior exegeta

do século XX, a quem devo o favor de ser um

querido amigo, insistiu constantemente — veja-

se o seu livro “A Igreja Católica ainda tem

futuro?” — que nos primeiros séculos houve

3

mulheres que presidiram à Eucaristia; então,

porque é que o que foi possível no princípio não

há-de ser possível hoje?

3. Pode escandalizar, mas é um facto: Jesus

foi leigo, não pertencia à classe sacerdotal. Aliás,

nesta linha, o Novo Testamento evitou a palavra

hiereus (sacerdote). Só mais tarde (século III) é

que a Eucaristia, que era um banquete festivo

dos cristãos no qual se fazia memória da Última

Ceia e dos muitos banquetes de e com Jesus, foi

interpretada como sacrifício ritual, dando

origem, consequentemente, aos sacerdotes,

seguindo-se daí que a Igreja ficou dividida em

duas classes: o clero (ai o clericalismo!) e os

leigos.

4. A Igreja vai continuar a precisar de

ministérios para as diversas funções e serviços?

É claro que sim.

Neste contexto, quero chamar a atenção

para que Bento XVI, quando era apenas

professor Joseph Ratzinger, falou em dois tipos

de padres: uns que continuariam na sua vida

normal, na sua família, nas suas profissões, mas

que as comunidades escolheriam, depois de

4

provas dadas, para presidir à comunidade,

orientá-la...; outros que, optando livremente

pelo celibato, escolheriam dedicar a sua vida

integralmente à Igreja, estando entre as suas

tarefas a coordenação e formação dos outros

padres...

5. Neste contexto de temas e problemas, é

inevitável e imprescindível rever toda a questão

da formação nos Seminários, com uma vivência

que corre o risco de fugir à realidade como ela é,

com a ausência do universo feminino e de todas

as exigências até económicas da vida actual e

formando jovens para uma vida que vai ser

tantas vezes de exigência e solidão insuportável

numa sociedade que hoje já não é sequer

sociologicamente cristã. Os padres devem

cuidar; e quem cuida deles?...

Sábado, 16 de Agosto de 2025

sábado, 16 de agosto de 2025

“Estar perto de mim é estar perto do Fogo” -P. Manuel João Pereira Correia mccj

 “Estar perto de mim é estar perto do Fogo”

Ano C – Tempo Comum – 20.º Domingo
Lucas 12,49-53: “Vim trazer fogo à terra”

Decididamente o Senhor não nos deixa tranquilos nem mesmo em tempo de férias. Depois dos seus ensinamentos sobre a oração, as riquezas e a vigilância, nos domingos passados, hoje as suas palavras tornam-se ainda mais fortes e desconcertantes, empregando uma linguagem enigmática, que muitas vezes foi mal interpretada. Estamos a caminho de Jerusalém e Jesus coloca diante dos seus discípulos as exigências radicais da sua sequela. Hoje, porém, Jesus fala de si mesmo, da sua missão e do seu destino. Fá-lo através de três imagens: o fogo, o batismo e a divisão. Detenhamo-nos sobretudo na primeira: o fogo.

1. “Vim trazer FOGO à terra
e como gostaria que já estivesse aceso!”

O fascínio do fogo sobre a imaginação humana e o seu valor simbólico são universais. Não nos surpreende, portanto, que a palavra “fogo” (esh em hebraico; pyr em grego, na versão dos LXX) apareça mais de 400 vezes no Antigo Testamento e mais de 70 vezes no Novo Testamento.

O fogo, na Bíblia, é um dos símbolos mais ricos e polivalentes. Está muitas vezes ligado à manifestação da Shekinah (a presença visível de Deus), como na sarça ardente, na coluna de fogo do Êxodo, no monte Sinai e nas visões proféticas. Pode ser instrumento do juízo divino ou representar a purificação espiritual. Ao mesmo tempo, o fogo simboliza paixão e amor intenso. No Novo Testamento, finalmente, torna-se imagem do Espírito Santo.

1. De que fogo fala Jesus? Poderíamos pensar no fogo do Espírito, mas aqui parece tratar-se sobretudo do fogo da sua Palavra, inflamada pela paixão do Amor divino. Os Evangelhos concordam em apresentar Jesus como um homem apaixonado. Ele é o novo Elias, “profeta como um fogo; a sua palavra ardia como uma tocha” (Sir 48,1), devorado pelo zelo divino (cf. 1 Rs 19,10). O zelo de Jesus era o de cumprir a vontade do Pai (Jo 4,34; Lc 2,49). Durante a purificação do Templo os apóstolos lembrar-se-ão da palavra do Salmista: “O zelo da tua casa me consumirá.” (Jo 2,17).

Este fogo passional manifesta-se tanto na ira contra escribas, fariseus e autoridades do Templo, que tinham colonizado a religião, como na compaixão pelas multidões e os doentes, na misericórdia para com os pecadores e no amor pelos seus discípulos, que “amou até ao fim”. É deste fogo que Cristo quer incendiar o mundo!

2. São Paulo recorda-nos que “o amor de Deus foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5). O que fizemos dele? Ainda arde no nosso coração? Fulgura e inflama à nossa volta? Ou é apenas uma chama vacilante? Vivemos uma vida cristã morna? Que o Senhor não tenha de nos dizer o que disse à Igreja de Laodiceia: “tu não és nem frio nem quente” (Ap 3,15-16).

3. Como aquecer o coração? Aproximando-nos do Fogo! No “Evangelho de Tomé”, um apócrifo do séc. I-II que recolhe muitos ditos atribuídos a Jesus, encontramos estas duas afirmações: “Acendi fogo ao mundo, e vede, eu o guardo até que se inflame” (n. 10); “Quem está perto de mim está perto do fogo, e quem está longe de mim está longe do reino” (n. 82). O Senhor que não veio “apagar o pavio que ainda fumega” (Mt 12,20) é o guardião do Fogo no nosso coração, mas devemos aproximar-nos dele com confiança. O medo de ser “queimado” pelo Fogo divino é bem real. Neste sentido, comenta com uma ironia melancólica o grande teólogo e autor espiritual Von Balthasar:
“Se tens fogo no teu coração, guarda-o bem dentro de um lar incombustível e mantém-no coberto, porque se salta sequer uma faísca e tu não o notas, tornar-te-ás presa das chamas juntamente com a casa. Deus é um fogo devorador. Tem cuidado com a forma como tratas com Ele, para que não comece a exigir e tu já não saibas para onde te conduz. Deus é perigoso. Presta atenção, Ele esconde-se, começa com um pequeno amor, com uma pequena chama e, antes que te apercebas, já te possui inteiro e és prisioneiro.” (O coração do mundo)

4. Outra coisa que pode acontecer é que as cinzas cubram o fogo. É necessário, periodicamente, retirar as cinzas e reavivar o fogo. O verbo grego (anazōpureō) traduzido por “reavivar” (acender de novo, reanimar o fogo sob as cinzas) aparece apenas uma vez no Novo Testamento, precisamente em 2 Tm 1,6, onde São Paulo se dirige ao seu discípulo Timóteo dizendo: “Exorto-te a reavivar o dom de Deus que há em ti”. A que “ventilador” recorrer para reavivar o Fogo no nosso coração? Ao sopro do Espírito Santo! Cada manhã peçamos a Ele que remova as cinzas do dia anterior para que o novo dia seja animado pelo Fogo do Amor.

5. O cristão é chamado a ser uma chama viva. Aliás, uma sarça viva, como aquela que Moisés viu no Sinai. Diz um dito dos antigos Padres do deserto:
“Um discípulo perguntou ao padre José de Panefisi: ‘Que devo fazer ainda?’, depois de lhe ter descrito a sua vida de oração, jejum, meditação e pureza interior. Então o ancião levantou-se, ergueu os braços para o céu, e os seus dedos tornaram-se como dez tochas. ‘Se queres — disse-lhe — torna-te todo em fogo.’”

2. “Tenho um BATISMO com que hei de ser batizado,
e como me angustio até que se cumpra!”

Esta afirmação de Jesus é mais compreensível. Ele refere-se à sua morte na cruz. São João insiste que Jesus “é aquele que veio pela água e pelo sangue” (1 Jo 5,6-8). Jesus mergulhou nas águas do Jordão em solidariedade connosco, mas o “batismo” de sangue fá-lo por nós. Jesus diz que “está apressado” (sentido literal do verbo grego, mais do que “angustiado”) para que isso aconteça.

Há uma ligação entre a imagem do batismo e a do fogo. Jesus fala da necessidade deste batismo para que o Fogo do Amor de Deus se propague no mundo. As autoridades judaicas quiseram apagar o fogo da sua palavra e da sua mensagem, mergulhando Jesus nas águas da morte, mas com a sua ressurreição explodirá o Fogo do Espírito por toda a terra.

3. “Pensais que Eu vim trazer paz à terra?
Não, digo-vos, mas DIVISÃO”

Esta afirmação de Jesus é bem compreensível. A sua palavra incomoda e suscita inquietação, resistências e oposições. Acorda-nos das falsas pazes. Onde quer que Cristo entre, traz confusão e divisão, tanto nas consciências como na sociedade e até na Igreja.

Se a mensagem de Jesus é fogo, o cristão é um incendiário. Incomoda os bem-pensantes e os defensores do status quo. Denuncia os compromissos. Provoca a oposição de quem se despreocupa do bem comum e de quem explora a natureza e os pobres.

O Fogo do Evangelho não nos deixa em paz. Eis porque, sem sequer nos darmos conta, procuramos subterfúgios para o manter um pouco afastado. E, paradoxalmente, o mais sofisticado desses subterfúgios pode ser até a própria oração, diz ainda Von Balthasar nesta sua provocação irónica:
“Se não consegues libertar-te do seu olhar, então reza até que já não o vejas. É possível. Rezar até te livrares d’Ele. Rezar o Deus próximo até o tornar num Deus distante. Sepulta-o de orações, até que Ele, com a sua voz, emudeça.” (O coração do mundo)

P. Manuel João Pereira Correia, mccj



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sábado, 9 de agosto de 2025

 À espera de Deus na noite - P. Manuel João Pereira Correia mccj

 À espera de Deus na noite

Ano C – Tempo Comum – 19.º Domingo
Lucas 12,32-48: “Onde está o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração!”

Nestes domingos estamos a ler o capítulo XII de São Lucas, um entrelaçado de ditos, ensinamentos e breves parábolas, sem uma clara unidade entre si. A alguns de nós que o ouvirem em tempo de férias poderá parecer um Evangelho fora de tempo e fora de lugar. Enquanto procuramos um pouco de descanso e distração, para esquecer as preocupações da vida, esta Palavra surpreende-nos, propondo-nos temas demasiado sérios e incómodos. Talvez por isso o Senhor nos diga, antes de mais: “Não temas, pequeno rebanho, porque ao vosso Pai agradou dar-vos o Reino”.

Vigiando na noite

A passagem deste domingo tem uma tonalidade de espera apocalíptica, apresentando a vida cristã como a espera do regresso do Senhor na “noite”. Três vezes é repetido o convite a estar preparado: “Estejam cingidos os vossos rins e acesas as lâmpadas”“Estejam preparados, porque, na hora em que não imaginam, vem o Filho do Homem”. O convite de Jesus a vigiar para não ser surpreendido impreparado à sua chegada é ilustrado por três breves comparações: a espera do senhor que partiu para um banquete de casamento, o ladrão e o administrador da casa.

A noite que se alterna com o dia é uma metáfora forte da vida. Quantas vezes nos parece que estamos na escuridão, sem saber para onde ir, assoberbados pelos problemas, com ameaças que pairam sobre a nossa vida… Ou a viver tempos obscurecidos pela guerra e pela injustiça, pela incerteza quanto ao futuro… A Palavra deste domingo ajuda-nos a compreender e a viver nesta “noite”.

A noite do Êxodo

A primeira leitura (Sabedoria 18,6-9) apresenta esta noite como a noite do Êxodo, quando todo o povo em espera “estabeleceu, de comum acordo, esta lei divina: partilhar, da mesma forma, sucessos e perigos”.

A vida cristã é um êxodo, um caminho de libertação, muitas vezes marcado por tentações, pela incerteza nas escolhas feitas, pela nostalgia do passado… Torna-se, muitas vezes, uma longa noite. Tínhamos imaginado uma travessia mais rápida e menos cansativa, e que estaríamos depressa instalados na Terra Prometida. Chegados ao Sinai, Deus disse-nos: “Vós mesmos vistes o que fiz ao Egipto e como vos levei sobre asas de águia e vos trouxe a mim” (Ex 19,4). Pensávamos, portanto, que o pior já tinha passado. Mas o Senhor entendeu que ainda não estávamos prontos para entrar e que eram precisos “quarenta anos” de deserto para libertar o nosso coração das sobreestruturas mentais e dos hábitos que nos mantinham no “Egipto”, na “casa da escravidão”. Aí ainda estavam os nossos tesouros. E, “onde está o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração”.

Eis porque a noite do nosso êxodo será ainda longa. Gritaremos também nós à sentinela do profeta Isaías: “Sentinela, quanto falta para acabar a noite?” E a sentinela responder-nos-á, algo enigmática: “Vem a manhã, mas também a noite; se quereis perguntar, perguntai; convertei-vos, vinde!” (Is 21,11-12). Cabe a cada um de nós escutar e interpretar esta Voz!

A noite da fé

A segunda leitura (Hebreus 11,1-19) apresenta a noite do crente como a noite da fé: “Na fé morreram todos estes, sem terem obtido os bens prometidos, mas vendo-os e saudando-os de longe, declarando que eram estrangeiros e peregrinos sobre a terra”.

A definição de fé que encontramos no início da leitura é surpreendente: “A fé é o fundamento do que se espera e a prova do que não se vê”. Por isso, a noite é o âmbito da fé. Mesmo sendo filhos da luz, “caminhamos na fé e não na visão”(2Cor 5,7). É preciso aceitar e atravessar a noite da fé para aprender a “esperar contra toda a esperança” (Rm 4,18).

A fé, para quem acredita, é uma escolha radical de vida. Significa confiar numa promessa de Deus, como Abraão. Há, de facto, duas maneiras de planear a vida: segundo um projeto pessoal ou segundo uma vocação orientada por uma promessa de Deus. Projeto provém do latim proiectum (pro-icere, lançar algo para a frente), enquanto promessa provém de promissa (pro-mittere, enviar para a frente). O projeto planeio-o eu; a promessa é feita por Deus. O que está a orientar a minha vida: um projeto meu ou uma promessa de Deus?

A noite da vigília no serviço

Na passagem do Evangelho, Jesus fala três vezes de bem-aventurança: “Felizes os servos a quem o senhor, ao chegar, encontrar vigilantes”“E se, chegando à meia-noite ou antes do amanhecer, os encontrar assim, felizes serão!”“Feliz aquele servo a quem o senhor, ao chegar, encontrar a agir assim”.

No Evangelho de Lucas, o uso das palavras “feliz” e “felizes” (do grego μακάριος – makários, isto é, “feliz”, “abençoado”, “afortunado”) aparece em vários contextos. Jesus veio revelar-nos o caminho da felicidade. É o caminho que conduz ao Reino, a meta de todo o homem. Trata-se de um caminho que permanece ainda hoje escondido e misterioso para muitos, crentes e não crentes. Apresenta-se de tal forma contra-intuitivo que chega a parecer uma farsa. Mas tornou-se credível porque Jesus e outros que ousaram confiar nele o encarnaram. O Evangelho recolheu o traçado e tornou-se o guia para as mulheres e homens do Caminho, como os Atos dos Apóstolos definem os cristãos.

O Caminho é único: é Cristo, mas podemos falar de trilhos diferentes? Talvez sim. Alguns parecem-nos mais árduos do que outros. Certos, não nos sentimos capazes de os percorrer. Pensamos na santidade de certos cristãos ou na “santidade” laica de certas pessoas que se dedicam heroicamente a aliviar o sofrimento. Inalcançáveis. Pois bem, o trilho que Jesus nos propõe hoje parece-me acessível a todos. Certamente, é sempre para percorrer na noite do êxodo e da fé, mas, ainda assim, ao alcance dos pequenos, dos servos. Não temos de fazer coisas extraordinárias, mas simplesmente permanecer despertos e fazer aquilo que é o nosso dever: servir! Um serviço humilde, escondido, talvez até banal, que não será publicitado nas redes sociais nem procurará likes, mas que é dado como adquirido: “Somos servos inúteis. Fizemos o que devíamos fazer” (Lc 17,10). Não vos parece esta uma versão do “pequeno caminho” do “caminho do amor simples e confiante”, ao alcance de todos, traçado por Santa Teresa do Menino Jesus?

P. Manuel João Pereira Correia mccj
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domingo, 3 de agosto de 2025

O que farei? - P. Manuel João Pereira Correia, mccj

 O que farei?

Ano C – 18.º Domingo do Tempo Comum
Lucas 12,13-21: “Evitem toda a ganância”

Estamos a caminhar com Jesus, guiados pelo Evangelho de Lucas. Vamos a caminho de Jerusalém. Tempo antes, Jesus, “quando se completaram os dias em que devia ser elevado ao céu, tomou a decisão firme de se dirigir a Jerusalém” (Lc 9,51). Pelo caminho, o Senhor encontra pessoas e ensina. No domingo passado, Jesus falou-nos da oração. Hoje falar-nos-á do uso dos bens, um tema muito caro a São Lucas.

1. “Alguém da multidão disse a Jesus”

Tudo começa com a intervenção de alguém da multidão que pede a Jesus que diga ao seu irmão mais velho para repartir com ele a herança. Jesus responde, algo incomodado: “Homem, quem me fez juiz ou árbitro entre vós?”.

Eis um homem qualquer! Quando no Evangelho aparece alguém sem nome, devemos estar atentos: provavelmente refere-se a nós. De facto, este homem representa muitos de nós (e ao dizer “nós”, penso também em mim!). Jesus acabara de dizer: “Não se vendem cinco passarinhos por dois asses? No entanto, nem um só deles é esquecido diante de Deus. Até os cabelos da vossa cabeça estão todos contados. Não temais: valeis mais do que muitos passarinhos!” (Lc 12,6-7). Mas este homem pensava noutra coisa. Estava preocupado porque o irmão mais velho tinha ficado com a herança e não lhe queria dar a parte dos bens móveis que lhe pertenciam.

O mesmo acontece muitas vezes connosco. Jesus, a Palavra, fala, mas o nosso pensamento está noutro lugar. Estamos presos às nossas preocupações e gostaríamos que o Senhor, em vez de nos falar de outras coisas, resolvesse os nossos problemas!

Senhor, quando me disponho a escutar-te, que eu esvazie o meu coração de todos os problemas e preocupações, de todos os sentimentos e emoções, de todos os pensamentos e desejos, para dar lugar à tua Palavra!

Alguém da multidão! Jesus estava rodeado pelos seus discípulos e por milhares de pessoas (cf. Lc 12,1). Aquele homem estava no meio da multidão. A posição deste homem é significativa. Ele faz parte da multidão. Faz-me pensar que a multidão é o “lugar” de muitos cristãos hoje. Sim, simpatizam com Jesus, mas mantêm uma certa distância d’Ele e dos seus ensinamentos. A proximidade é demasiado comprometida numa sociedade cada vez mais indiferente, senão abertamente hostil à fé cristã. Estar próximo de Cristo, mesmo apenas na nossa maneira de falar, pode colocar-nos no embaraço de Pedro quando Jesus foi julgado: “Este também estava com ele, pois também é galileu” (Lc 22,59).

Senhor, tu chamaste-me da multidão pelo meu nome (Lc 6,13-16). Dá-me, Senhor, o Espírito de fortaleza, para que eu vença o medo e a cobardia sempre que for chamado a testemunhar o teu nome!

2. “Um homem rico”

Como profeta, Jesus coloca-se imediatamente noutro plano e adverte os seus ouvintes sobre o perigo das riquezas: “Tende cuidado e guardai-vos de toda a ganância, pois, ainda que alguém tenha abundância, a sua vida não depende dos seus bens”.
A riqueza, o dinheiro, os bens são talvez o maior ídolo deste mundo porque nos dão uma sensação de segurança e de poder conseguir tudo, inclusive a felicidade. Não por acaso, São Paulo, na segunda leitura (Colossenses 3,1-11), adverte os cristãos contra “essa ganância, que é uma idolatria”. A este ídolo são sacrificadas diariamente milhares de vidas no altar do lucro.

Um homem rico e afortunado! Para aprofundar o seu ensinamento, Jesus conta a parábola de um homem rico que teve a sorte de colher uma colheita excecional. Quem é ele? À primeira vista, não se trata de nós. Mas, se olharmos bem, talvez o encontremos encolhido no quarto dos desejos do nosso coração. É difícil encontrar alguém que não deseje ser rico!

Que farei? Farei assim! Este homem, porém, tem um problema: os seus celeiros tornam-se demasiado pequenos para guardar tantos bens e pergunta-se: “Que farei, pois não tenho onde armazenar a minha colheita?”. Mas logo encontra a solução: “Farei assim – disse –: destruirei os meus celeiros e construirei outros maiores”. É um homem prático e decidido, como o administrador desonesto de outra parábola de Jesus (cf. Lc 16,1-8).

Esta pergunta “que farei?” é recorrente nos escritos de São Lucas (cf. também 3,10.12.14; 16,3.4; At 2,37; 16,30). É uma pergunta que deveríamos fazer mais vezes: ela discerne o “que fazer”, em vez de deixar que as situações se deteriorem ou que outros decidam por nós.

O que nos impressiona neste homem é o seu egocentrismo. Para ele, só existe o “eu”: “eu destruirei... construirei... recolherei...” Ele e os seus bens: “a minha colheita... os meus celeiros... os meus bens...”. Nenhum de nós pensaria assim. Talvez dissessemos:
– “Se eu fosse rico, saberia o que fazer: ajudaria os meus, naturalmente, e os pobres!”.
– Mas tu és rico! Pensa em quantos talentos o Senhor te confiou: que uso estás a fazer deles?

3. “Insensato!”

O homem rico da parábola não tem interlocutor. Ele “refletia consigo mesmo” e falava apenas consigo: “Minha alma, tens muitos bens em reserva para muitos anos; descansa, come, bebe, diverte-te!”. Neste momento, porém, surge um interlocutor inesperado: “Mas Deus disse-lhe: ‘Insensato, esta noite mesmo te será pedida a tua vida. E o que acumulaste, para quem será?’”.
Será Deus um desmancha-prazeres? Não, é simplesmente a voz da consciência que nos chama à realidade da vida, como ouvíamos do Qoélet na primeira leitura: “Vaidade das vaidades: tudo é vaidade!”.

Mantenhamos a nossa consciência desperta, deixemo-la gritar: “Insensato!”, para que não tenha de o fazer, no fim, no momento do balanço da nossa vida: “Insensato, que fizeste da tua vida?”

Proposta de vida

Jesus termina a parábola dizendo: “Assim acontece com quem acumula tesouros para si, mas não é rico diante de Deus”. Noutra ocasião, na conclusão da parábola do administrador desonesto, diz: “E eu digo-vos: fazei amigos com o dinheiro injusto, para que, quando ele faltar, vos recebam nas moradas eternas” (Lc 16,9). E São Basílio diz ao homem rico e a nós: “Se quiseres, tens celeiros: são as casas dos pobres”.

Senhor, conscientes da nossa frequente insensatez na vida, pedimos-te humildemente como o Salmista: “Ensina-nos a contar os nossos dias, para que alcancemos um coração sábio” (Salmo 89).

P. Manuel João Pereira Correia, mccj


sábado, 2 de agosto de 2025

humor, o riso e Deus - Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia

 Crónicas PÁRA E PENSA

O humor, o riso e Deus

Anselmo Borges

Padre e Professor de Filosofia

Porque nos tribunais portugueses decorre

um processo por causa de um vídeo

humorístico, ouso voltar ao tema em

epígrafe, mesmo correndo o risco de aqui e

ali me repetir.

Sobre Deus que sabemos nós? Ele é

infinito e está para lá de tudo o que possamos

pensar ou dizer. O que sabemos dEle

sabemo-lo sobretudo através de Jesus, a sua

imagem no mundo.

Através de Jesus, sabemos que Deus é,

como se lê na Primeira Carta de São João,

Agapê: Amor incondicional. Mas o Evangelho

segundo São João também diz que Deus é

Logos: Razão, Inteligência e que tudo foi

criado pelo Logos. Por isso, Deus tem sentido

2

de humor, pois o humor é sinal de

inteligência. Não é o humor fino revelador de

uma inteligência fina? Mas o que estamos a

dizer, quando dizemos isto acerca de Deus?

Logo no primeiro livro da Bíblia, o Génesis,

há uma passo belíssimo em conexão com o

riso. “O Senhor apareceu a Abraão quando

ele estava sentado à porta da sua tenda”, sob

a figura de três homens. ‘Onde está Sara, tua

mulher?’ Ele respondeu: ‘Está aqui na tenda.

Um deles disse: Passarei novamente pela tua

casa dentro de um ano, nesta mesma época,

e Sara, tua mulher, terá já um filho’. Ora,

Sara estava a escutar à entrada da tenda.

Abraão e Sara eram já velhos, e Sara já não

estava em idade de ter filhos. Sara riu-se

consigo mesma e pensou: ‘Velha como estou,

poderei ainda ter esta alegria, sendo também

velho o meu senhor?’.” O que é facto é que “o

Senhor visitou Sara, como lhe tinha dito, e

realizou nela o que lhe prometera. Sara

concebeu e, na data marcada por Deus, deu

um filho a Abraão, quando este era já velho.

Ao filho que lhe nasceu de Sara deu Abraão o

nome de Isaac. Abraão tinha cem anos

quando nasceu Isaac, seu filho. Sara disse:

Deus concedeu-me uma alegria, e todos

quantos o souberem alegrar-se-ão comigo.”

3

Há aqui dois tipos de riso: Sara ri-se para

dentro: como é possível, velha, ter um filho?

Mas ao filho é dado o nome de Isaac, que, em

hebraico, quer dizer “riso”, sendo aqui o riso

um riso intenso de alegria: Isaac também

quer dizer “aquele que traz alegria”.

De Jesus diz-nos o Evangelho que chorou:

chorou pela morte do seu amigo Lázaro,

também sobre Jerusalém. Não se diz que riu.

Mas já Santo Tomás de Aquino observou que

é evidente que Jesus riu. A prova: Jesus é

homem e rir é característica essencial do ser

humano. Jesus participou em festas de

casamento e alguém imagina uma festa de

casamento sem risos, sem piadas festivas? O

Evangelho testemunha que Jesus

experienciou o melhor sentimento face à vida

e ao seu milagre: o do maravilhamento e do

contentamento.

O humor e o riso, repito, são um sinal

evidente de inteligência, desdramatizam a

vida, permitem viver de modo sadio consigo

próprio, fazem bem à saúde, abrem

transcendências. A Igreja está, ou deveria

estar, atravessada pelo bom humor, porque

“um santo triste é um triste santo”. E há

piadas fatais. Lá está o dito famoso: “ridendo

castigat mores”: a rir castiga-se e corrige-se

4

os costumes. Gil Vicente foi exemplar nisso.

Digo: ai da Igreja e dos crentes sem a crítica

mordaz, ácida, pela palavra e pela caricatura!

O que não se pode é cair na boçalidade, pois

esta apenas significa falta de inteligência. O

riso também cura a vaidade oca: “Mesmo no

mais alto trono do mundo, está-se sentado

sobre o cu”, escreveu Montaigne. Umberto

Eco, o inesquecível autor de O nome da rosa,

esse desabafou: “Aprendi que o riso é a única

forma de lidar com a absurdidade da

existência”.

Na Idade Média, realizava-se a chamada

Festa dos Loucos, uma crítica brutal ao poder

eclesiástico. Pegava-se num subdiácono, o

grau mais baixo da hierarquia, era vestido de

bispo, colocado em cima de um burro,

entrava na igreja com a face voltada para a

cauda, de costas para o altar. Em momentos

fundamentais da liturgia, o celebrante e o

povo zurravam. Na transmissão simbólica do

báculo episcopal, rezava-se o Magnificat

naquele passo: “e Deus derrubou os

poderosos e exaltou os humildes.” Chamada a

pronunciar-se, a Faculdade de Teologia de

Paris, justificou-a com a necessidade de dar

expansão à crítica, voltando depois a ordem.

5

A propósito da força crítica da piada e da

caricatura, fica aí esta sobre o Vaticano e

todo aquele luxo, que blasfema do Evangelho

de Jesus, no fausto de uma procissão com

cardeais, arcebispos, bispos, monsenhores...

Veio São Pedro à janela do Céu e viu aquilo e,

estarrecido, chamou Jesus, que olhou e

apenas comentou: “E pensarmos nós, Pedro,

que começámos aquilo, entrando eu de burro

em Jerusalém onde fui crucificado... Lembras-

te?” Por isso, respondi uma vez a uma

jornalista: “Não. Jesus não entraria no

Vaticano, porque não o deixariam entrar.”

Francisco socorria-se também do bom

humor, e todos os dias rezava a Oração do

bom humor, oração atribuída a São Tomás

Moro, o autor de A Utopia, o ex-chanceler que

não se esqueceu de levar a gorjeta para o

carrasco que ia decapitá-lo. Francisco

recomendou-a também aos membros da

Cúria Romana, onde tinha tantos adversários

e até inimigos, a quem falta o bom humor

divino: “Dá-me, Senhor, uma boa digestão e

também algo para digerir./ Dá-me um corpo

saudável e o bom humor necessário para

mantê-lo./Dá-me uma alma simples que sabe

valorizar tudo o que é bom/ e que não se

amedronta facilmente diante do mal, /mas,

6

pelo contrário, encontra os meios para voltar

a colocar as coisas no seu lugar./ Concede-

me, Senhor, uma alma/ que não conhece o

tédio,/ os resmungos,/ os suspiros/ e as

lamentações,/ nem os excessos de stress por

causa desse estorvo chamado ‘Eu’./ Dá-me,

Senhor, o sentido do bom humor./ Concede-

me a graça de ser capaz de uma boa piada,

uma boa piada para descobrir na vida um

pouco de alegria/ e poder partilhá-la com os

outros./ Ámen.”

Em Junho de 2024, Francisco fez questão

de encontrar-se com mais de 100 humoristas

de todo o mundo, incluindo os portugueses

Ricardo Araújo Pereira, Joana Marques e

Maria Rueff, afirmando que é “importante

fazer rir os outros, pois isso pode ajudar as

pessoas...” “É possível rir também de Deus? É

claro que sim, isto não é blasfémia, assim

como brincamos e fazemos piadas com as

pessoas que amamos. A tradição sapiencial e

literária hebraica é mestra nisso. Pode ser

feito, mas sem ofender os sentimentos

religiosos dos fiéis, especialmente dos

pobres.” Pessoalmente, acrescento: afinal,

não é de Deus que rimos, mas das nossas

imagens de Deus, tantas vezes ridículas (a

7

palavra ridículo vem do latim ridere (rir) e

quer dizer precisamente o que provoca riso).

Fiquei encantado, quando li Francisco a

dizer que, no caso de alguém se sentir numa

situação de algum abatimento, fizesse como

ele: caretas frente ao espelho... Estou

convicto de que isso lhe aconteceu várias

vezes, para poder superar tantos dissabores

por causa dos seus adversários e até inimigos

no Vaticano e não só, como ficou dito...

Sábado, 26 de Julho de 2025

O Cristo Pensador - Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia

 Crónicas PÁRA E PENSA

O Cristo Pensador

Anselmo Borges

Padre e Professor de Filosofia

Karl Rahner, talvez o maior teólogo

católico do século XX — tenho a honra de

ter sido seu aluno —, deixou escapar um

dia, numa aula, uma daquelas observações

que nunca mais se esquecem: na Igreja

católica é obrigatório confessar os pecados

graves e mortais, mas não estava a ver que

algum bispo ou padre ou superior religioso,

ministro ou professor católico se tenha

confessado do pecado grave e,

frequentemente, mortal, da ignorância

culpada, da incompetência fatal, da

2

inteligência irresponsavelmente

menorizada.

Em geral, nas igrejas, faz-se muito

pouco apelo à razão, à reflexão crítica, à

pergunta. Como se a fé não tivesse de

conviver com a inteligência, com a dúvida e

com a pergunta. Os cristãos — mas isso

acontece em todas as religiões — parece que

ficam tolhidos na sua capacidade de

perguntar. No entanto, Jesus morreu a rezar

esta pergunta infinita que atravessa os

séculos: “Meu Deus, meu Deus, porque me

abandonaste?” e, perto de nós, Martin

Heidegger, um dos filósofos mais influentes

do século XX, escreveu que “a pergunta é a

piedade do pensamento”.

Na Igreja, valoriza-se a obediência,

referindo constantemente aquele passo de

São Paulo: “Cristo obedeceu até à morte e

morte de cruz”. Mas quase nunca se explica

o que é essa obediência de Cristo, ocultando

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que, para obedecer a Deus e ao que Deus

quer — dignidade, futuro, fraternidade,

liberdade —, teve de desobedecer aos

opressores, nomeadamente a uma religião

que, em vez de libertar, oprimia.

Tanto entre os crentes como entre os

ateus e os sem religião, não faltam os que

sabem, com saber certo, sem qualquer

dúvida nem hesitação, o que Deus é, em

que consiste a vontade divina para cada

pessoa, qual é o sentido da história e do

mundo. Entronizados no poder, definem

dogmas, estabelecem normas e mandam

com soberania inquestionável.

Perguntar vem do latim percontari, que,

por sua vez, terá na sua base contus, vara

comprida. Então, perguntar,

etimologicamente, quer dizer examinar o

fundo de um rio ou de um tanque com um

bastão e, por extensão, sondar o interior do

homem e da realidade.

4

Só o Homem pergunta e pensa. Um

animal com a mão encostada à face ou a

face entre as mãos, a cabeça inclinada e

absorto, é um ser humano que pensa: tenta

ver o seu interior e o mais fundo de tudo.

Nenhum outro animal pensa nem se

examina nem examina as consequências dos

seus actos nem pergunta. O Homem

pergunta, e a sua pergunta não tem limites.

E é assim que, nesse seu perguntar, pode

surgir a questão da transcendência e de

Deus. Como escreveu Theodor Adorno, da

Escola Crítica de Frankfurt, “o pensamento

que se não decapita desemboca na

transcendência”.

Por tudo isto, é uma surpresa boa

encontrar em Vilnius algo típico da

Lituânia, talvez porque é um povo que

sofreu demasiado: umas pequenas estátuas

de Cristo a pensar — o Cristo Pensador.

Trouxe uma que me acompanha.

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Pensar vem do latim pensare, com o

significado de ponderar, examinar, pesar

argumentos e razões. Pensar pode ter

também o significado de aplicar o curativo,

os remédios necessários — aí está o penso

para curativo. E é assim que, em português,

pesar também quer dizer solidariedade com

a tristeza de alguém que sofre.

Neste quadro, os incontáveis horrores

que nos rodeiam obrigam a pensar. Mas,

por outro lado, também por influência dos

smartphones, o QI está a cair. E, no que à

Teologia se refere, torna-se cada vez mais

acentuada a constatação de Hans Küng, um

dos últimos maiores teólogos, tão

maltratado pela Igreja oficial — partiu a 6

de Abril de 2021: “O estudo da teologia

católica é hoje escassamente atractivo para

mentes livres e criativas.”

Sábado, 19 de Julho de 2025